sábado, 23 de fevereiro de 2013

A noite em que deixaram ele sozinho - (Juan Rulfo)



- Por que tão devagar? - Feliciano Ruelas perguntou aos dois que iam na frente. - Desse jeito a gente vai acabar dormindo. Será que vocês não têm pressa de chegar logo?

- A gente vai chegar amanhã de manhãzinha - responderam.

Foi a última coisa que ouviu dos dois. Suas últimas palavras. Mas disso se lembraria depois, no dia seguinte. Lá iam os três, olhando o chão, tratando de aproveitar a pouca claridade da noite. "É melhor estar escuro. Assim, não verão a gente." Também tinham dito isso, um pouco antes, ou talvez na noite anterior. Não se lembrava. O sono nublava seu pensamento. Agora, na subida, viu que lá vinha o sono de novo. Sentiu quando chegou perto, rodeando-o como se buscasse a sua parte mais cansada. Até que caiu em cima dele, sobre suas costas, onde levava os rifles cruzados.

Enquanto o terreno esteve regular, caminhou depressa. Ao começar a subida, atrasou-se; sua cabeça começou a se mover devagar, mais lentamente conforme seus passos se encurtavam. Os outros passaram ao seu lado, agora iam muito adiante e ele continuava balançando a cabeça adormecida. Foi ficando para trás. Tinha o caminho à sua frente, quase na altura de seus olhos. E o peso dos rifles. E o sonho trepado ali, onde suas costas se encurvavam. Ouviu quando perdia seus passos: aquelas pisadas ocas que vinha ouvindo sabe lá desde quando, durante quem sabe quantas noites: "Da Magdalena para cá, a primeira noite; depois de lá para cá, a segunda, e esta é a terceira. Não seriam muitas" pensou "se tivéssemos pelo menos dormido de dia. Mas eles não quiseram: 'Podem pegar a gente enquanto a gente dorme' disseram. 'E isso seria a pior coisa.'"

- Pior para quem?

Agora o sono o fazia falar. "Eu disse a eles que esperassem: vamos deixar este dia para descansar. Amanhã a gente caminha direto e com mais gana e com mais força, se precisarmos correr. Pode acontecer, se for o caso." Parou, com os olhos fechados. "É muito" disse. "O que é que a gente ganha com a pressa? Uma jornada. Depois de tantas que perdemos, não vale a pena." Em seguida gritou: "Onde é que vocês andam?" E quase em segredo: "Vão embora, então. Vão!"  Encostou-se no tronco de uma árvore. Lá estava a terra fria e o suor convertido em água fria. Esta devia ser a serra de que tinham falado. Lá embaixo o tempo morno, e agora aqui este frio que se enfiava por baixo do capotão: "Como se me levantassem a camisa e manuseassem minha pele com mãos geladas."

Foi sentando sobre o musgo. Abriu os braços como se quisesse medir o tamanho da noite e encontrou uma cerca de árvores. Respirou o ar cheirando a terebintina. Depois deixou-se deslizar no sono, sobre as ramas secas, sentindo como seu corpo ia se intumescendo. Foi despertado pelo frio da madrugada. A umidade do orvalho. Abriu os olhos. Viu estrelas transparentes num céu claro, por cima dos galhos escuros. "Está escurecendo", pensou. E tornou a dormir. Levantou-se ao ouvir gritos e o apertado golpear de cascos sobre a argila seca do caminho. Uma luz amarela beirava o horizonte. Os arrieiros passaram ao lado dele, olhando-o. Cumprimentaram: "Bom dia", disseram. Mas ele não respondeu. Lembrou-se do que tinha de fazer. Já era de dia. E ele devia ter atravessado a serra de noite para evitar os vigias. Aquele passo era o mais guardado. Tinham dito a ele. Tomou o cesto com as carabinas e jogou-as nas costas. Fez-se a um lado do caminho e cortou pelo monte, até onde o sol estava saindo. Subiu e desceu, cruzando colinas empedradas.

Parecia ouvir os arrieiros, que diziam: "Vimos ele lá em cima. É assim e assado, e carrega muitas armas." Jogou os rifles fora. Depois se desfez das cartucheiras. Então sentiu-se levinho e começou a correr como se quisesse ganhar dos arrieiros na descida. Era preciso "subir lá no alto, rodear a meseta e depois descer". Estava fazendo isso. Deus mediante. Estava fazendo o que lhe disseram que fizesse, embora não nas horas indicadas. Chegou na beira do barranco. Olhou lá longe a grande planície cinzenta. "Eles devem estar lá. Descansando ao sol, já sem nenhuma ladeira", pensou. 
E deixou-se cair barranco abaixo, rodando e correndo e tornando a rodar. "Deus mediante!", dizia. E rodava cada vez mais em sua correria. Parecia continuar ouvindo os arrieiros quando disseram a ele: "Bom dia!" Sentiu que seus olhos eram enganadores. Chegarão ao primeiro vigia e dirão: "Vimos ele em tal e tal lugar. Não vai demorar para estar por aqui."
De repente ficou quieto.

"Cristo!", disse. E já ia gritar: "Viva Cristo Rei!", mas se conteve. Tirou a pistola do embornal e acomodou-a debaixo da camisa, para sentir que estava pertinho de sua carne. Isso deu coragem a ele. Foi se aproximando até os ranchos de Água Zarca em passos silenciosos, olhando o bulício dos soldados que se esquentavam perto de grandes fogueiras. Chegou até as grades do curral e pôde vê-los melhor; reconhecer suas caras: eram eles, seu tio Tanis e seu tio Librado. Enquanto os soldados davam a volta ao redor do lume, eles se balançavam, dependurados de um tronco alto, no meio do curral. Não pareciam mais estar percebendo a fumaça que subia das fogueiras, e que enevoava seus olhos vidrosos e enegrecia suas caras.

Não quis continuar vendo os dois. Arrastou-se ao longo da cerca e encolheu-se numa esquina, descansando o corpo, embora sentisse que uma minhoca se retorcia em seu estômago. Acima dele, ouviu que alguém dizia:

- O que estão esperando para baixar esses dois?

- Estamos esperando o outro chegar. Dizem que eram três, então tem de ser três. Dizem que o que está faltando é um rapazinho; mas rapazinho e tudo, foi quem armou a emboscada para o tenente Parra e acabou com seu pessoal. Tem de cair por aqui, como caíram esses outros que eram mais velhos e mais bravos. Meu major diz que se não vier de hoje para amanhã, inteiramos a conta com o primeiro que passar, e assim as ordens terão sido cumpridas.

- E por que a gente não sai buscando? Vai ver a gente se distrai um pouco.

- Não carece. Tem de vir. Estão todos bandeando para a serra de Comanja para se juntar com os cristeiros do Catorze. Esses aí já são dos últimos. Bom mesmo seria deixá-los passar para que dessem guerra aos companheiros de Los Altos.

- É, isso sim, seria bom. Vamos ver se por causa disso também não enfileiram a gente para aqueles rumos. Feliciano Ruelas esperou um pouco mais que o bulício que arranhava seu estômago se acalmasse. Depois sorveu um bocadinho de ar como se fosse mergulhar na água e, agachado até se arrastar pelo chão, foi caminhando, empurrando o corpo com as mãos. Quando chegou ao rés do arroio, ergueu a cabeça e desandou a correr, abrindo caminho no pasto. Não olhou para trás nem parou em sua corrida até sentir que o arroio se dissolvia na planície.

Então parou. Respirou forte e tremulamente.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Trezentas Onças - (Simões Lopes Neto)


¾ Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar. Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.
¾ Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.
Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira… e fui-me à água que nem capincho! Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas quantas vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado. E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei. Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça e meia de sol.
¾Ah!…esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto e boa vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-me para acompanhar-me, e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios. Por sinal que uma noite... Mas isto é outra cousa; vamos ao caso. Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro; — parecia que o bichinho estava me chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para dai a pouco recomeçar.
¾Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé em terra na ramada da estância, ao tempo que dava as — boas-tardes! — ao dono da casa, agüentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!
Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados que ia levantar. E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns coriscos tirante a roxo... depois tudo me ficou cinzento, para escuro... Eu era mui pobre — e ainda hoje, é como vancê sabe... ¾ ; estava começando a vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras... Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:
¾Então patrício? está doente?
¾Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma desgraça: perdi uma dinheirama do meu patrão...
¾A la fresca!...
¾É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele pensar agora de mim!...
¾É uma dos diabos, é...; mas não se acoquine, homem! Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir... Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo. Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e, em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que deixei espetada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça azul, que subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo. Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a meia rédea, antes que outros andantes passassem.
Num vu estava a cavalo; e mal isto, o cachorrinho pegou a retouçar, numa alegria, ganindo — Deus me perdoe! — que até parecia fala. E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado. Ali logo frenteei com uma comitiva de tropeiros, com grande cavalhada por diante, e que por certo vinha tomar pouso na estância. Na cruzada nos tocamos todos na aba do sombreiro; uns quantos vinham de balandrau enfiado. Sempre me deu uma coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua. Amaguei o corpo e penicando de esporas, toquei a galope largo. O cachorrinho ia ganiçando, ao lado, na sombra do cavalo, já mui comprida. A estrada estendia-se deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; à direita, o sol, muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas.

Nos atoleiros, secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas, como numa despedida triste, em que a gente também não sacode os braços...
Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo. O zaino era um pingaço de lei; e o cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de fora e de rabo em pé, troteava miúdo e ligeiro dentro da polvadeira rasteira que as patas do flete levantavam. E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal; depois o lusco-fusco; depois; cerrou a noite escura; depois, no céu, só estrelas..., só estrelas...
O zaino atirava o freio e gemia no compasso do galope, comendo caminho. Bem por cima da minha cabeça as Três-Marias tão bonitas, tão vivas, tão alinhadas, pareciam me acompanhar..., lembrei-me dos meus filhinhos, que as estavam vendo, talvez; lembrei-me da minha mãe, de meu pai, que também as viram, quando eram crianças e que já as conheceram pelo seu nome de Marias, as Três-Marias. ¾ Amigo! Vancê é moço, passa a sua vida rindo...; Deus o conserve!…, sem saber nunca como é pesada a tristeza dos campos quando o coração pena!...

¾Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando, subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no arranco do galope lá caíam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d’água perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele!... Por entre as minhas lágrimas, como um sol cortando um chuvisqueiro, passou-me na lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos:
Quem canta refresca a alma,
Cantar adoça o sofrer;
Quem canta zomba da morte:
Cantar ajuda a viver!...

Mas que cantar, podia eu!... O zaino respirou forte e sentou, trocando a orelha, farejando no escuro: o bagual tinha reconhecido o lugar, estava no passo. Senti o cachorrinho respirando, como assoleado. Apeei-me. Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do arvoredo, metia respeito... que medo, não, que não entra em peito de gaúcho. Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vaga-lumes retouçando no escuro. Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos do sarandi; achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por todos os lados, mais pra lá, mais pra cá...; nada! nada!... Então, senti frio dentro da alma…, o meu patrão ia dizer que eu o havia roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que era!... E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição.  É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!  Tirei a pistola do cinto; armei-lhe o gatilho..., benzi-me, e encostei no ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala...
¾ Ah! patrício! Deus existe!...
No refilão daquele tormento, olhei para diante e vi... as Três-Marias luzindo na água... o cusco encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!...
¾Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no luzimento daquelas estrelas, era ele que mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a má tenção... O cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade da minha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança... Eh-pucha! patrício, eu sou mui rude... a gente vê caras, não vê corações...; pois o meu, dentro do peito, naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num descampado, no pino do meio-dia: era luz de Deus por todos os lados!... E já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um baio, bati o isqueiro e comecei a pitar. E fui pensando. Tinha, por minha culpa, exclusivamente por minha culpa, tinha perdido as trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como explicar o sucedido, comigo, acostumado a bem cuidar das cousas. Agora... era vender o campito, a ponta de gado manso ¾ tirando umas leiteiras para as crianças e a junta dos jaguanés lavradores — vender a tropilha dos colorados… e pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse a conta..., enfim, havia se ver o jeito a dar... Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não! E d’espacito vim subindo a barranca; assim que me sentiu o zaino escarceou, mastigando o freio. Desmaneei-o, apresilhei o cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei, aliviado. O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância. Ao dobrar a esquina do cercado enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu logo, acuando. O zaino relinchou alegremente, sentindo os companheiros; do potreiro outros relinchos vieram. Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se rebolcou, com ganas. Então fui para dentro: na porta dei o ¾ Louvado seja Jesu-Cristo; boa-noite! ¾ e entrei, e comigo, rente o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quatro paisanos; era a comitiva que chegava quando eu saía; corria o amargo. Em cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças, dentro.
¾Louvado seja Jesu-Cristo, patrício! Boa-noite! Entonces, que tal le foi de susto?...
E houve uma risada grande de gente boa. Eu também fiquei-me rindo, olhando para a guaiaca e para o guaipeva, arrolhadito aos meus pés...
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João Simões Lopes Neto (Pelotas9 de março de 1865 — Pelotas, 14 de junho de 1916) foi um escritor e empresário brasileiro. Segundo estudiosos e críticos de literatura, ele foi o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, pois procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas tradições. Simões Lopes Neto só alcançou a glória literária postumamente, em especial após o lançamento da edição crítica de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, em 1949, organizada para a Editora Globo, por Augusto Meyer e com o decisivo apoio do editor Henrique Bertaso e de Érico Veríssimo.

O surgimento da escrita - (Curiosidades)


 Ao que a história nos informa, o mais antigo sistema de escrita terá nascido por volta do ano de 3100 a. C. no Sul da Mesopotâmia, como resultado do processo de assimilação entre os Sumérios e os povos semitas da Arábia.


Em conformidade com o que já havíamos dito anteriormente, o processo teve início a partir de uma imagem simples, a qual evoluiu para um símbolo pictográfico fonetizado, para só mais tarde se constituir numa palavra.

O suporte era, à data, a massa mole de argila (placas de barro), na qual se inscreviam e gravavam, com a ajuda de um estilete, os símbolos gráficos em forma de cunha (até porque era difícil desenhar em barro mole sinais curvos), para depois serem cozidas como se de peças de cerâmica se tratasse.

Com o decurso natural do tempo, o sistema sumério cuneiforme (do latim cuneus, que significa cunha) foi adotado por outros povos, sendo que a dada altura, em todos os estados da Mesopotâmia se escrevia com caracteres cuneiformes, originalmente constituídos por desenhos de objetos, não só sobre as placas de argila mas também sobre peças de marfim e pequenas tábuas de madeira. Inicialmente concebido para responder a propósitos administrativos (leis, éditos, contabilidade dos comerciantes e dos Estados), depressa extravasou este primeiro objetivo para passar a ser utilizado para exprimir o pensamento do homem.


A escrita mesopotâmica era uma escrita complexa, composta por 2000 sinais cuneiformes originais, muito embora somente 200 ou 300 fossem utilizados constantemente.

Utilizada para exprimir as duas principais línguas da Mesopotâmia – a suméria do sul, e a acádica do norte –, ao fim de algum tempo, deixou de ser escrita em colunas para passar a apresentar-se em linhas – escrita horizontal –, legível da esquerda para a direita.

A escrita cuneiforme manteve-se vigente até ao começo da nossa era.

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Veja também:
 O surgimento da escrita | Os caracteres chineses | A Escrita Hieroglífica no Egito | A escrita cuneiforme da Mesopotâmia | O alfabeto: uma nova forma de escrita |Considerações finais


Fontes:
 UFRJ | Revista Temas

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Os Assassinos - (Ernest Hemingway)



 A porta da lanchonete Henry’s abriu-se e entraram dois homens. Sentaram ao balcão.
- O que é que vai ser? – perguntou George.
- Não sei – disse um dos homens. – O que é que você quer comer, Al?
- Não sei – disse Al. – Não sei o que quero comer.
Escurecia lá fora. A luz da rua entrava pela janela. Os dois homens ao balcão leram o cardápio. Da outra extremidade do balcão, Nick Adams observava-os. Ele conversava com George quando eles entraram.
- Eu quero lombo de porco assado com molho de maçã e purê de batatas – disse o primeiro homem.
- Não está pronto ainda.
- Então por que diabos põem isto no cardápio?
- Isto é o jantar – explicou George. Você pode pedi-lo as seis da tarde.
George olhou para o relógio arás do balcão.
- São cinco horas.
- O relógio marca cinco e vinte – disse o segundo homem.
- Está vinte minutos adiantado.
- Ah, pro inferno com o relógio – disse o primeiro homem. – O que você tem para comer?
- Posso servir qualquer tipo de sanduíche – disse George. – Posso fazer presunto e ovos, bacon e ovos, fígado e bacon, ou um bife.
- Me dê croquetes de galinha com ervilhas verdes ao molho de nata e purê de batatas.
- Isto é o jantar.
- Tudo o que queremos é jantar, hein? Isso é jeito de servir?
- Eu posso servir presunto e ovos, bacon e ovos, fígado…
- Vou querer presunto e ovos – disse o homem chamado Al. Ele usava um chapéu-coco e um sobretudo preto abotoado na frente. O rosto era pequeno e pálido e tinha os lábios finos.Usava um cachecol de seda e luvas.
- Me dê bacon e ovos – disse o outro homem. Tinha quase o mesmo tamanho de Al. Os rostos eram diferentes, mas estavam vestidos como gêmeos. Ambos usavam sobretudos muito pequenos para eles. Sentaram e apoiaram os cotovelos no balcão.
- Tem algo para beber? – perguntou Al.
- Cerveja, sucos e refrigerantes.
- Perguntei se tinha alguma coisa para beber?
- Só o que eu disse.
- Esta é uma cidade quente – disse o outro. – Como se chama?
- Summit.
- Já tinha ouvido? – perguntou Al ao amigo.
- Não – disse o amigo.
- O que fazem por aqui à noite? – perguntou Al.
- Eles jantam – disse o amigo. Ele vem todos aqui e comem a grande janta.
- É isso mesmo – disse George.
- Então você acha isso mesmo? – Al perguntou a George.
- Claro.
- Você é um rapaz espertinho, não é?
- Claro – disse George.
- Bem, mas não é – disse o outro sujeito. – Você acha que ele é, Al?
- Ele é um bobo – disse Al. Virou-se para Nick. – Qual é o seu nome?
- Adams.
- Outro espertinho – disse Al. – Ele não é um espertinho, Max?
- A cidade está cheia de espertinhos – disse Max.
George pôs as duas travessas, uma com presunto e ovos e outra com bacon e ovos, sobre o balcão. Juntou dois pratos de batatas fritas e fechou o postigo da cozinha.
- Qual é o seu – perguntou a Al.
- Não se lembra?
- Presunto e ovos.
- É mesmo um espertinho – disse Max. Inclinou-se e pegou o presunto com ovos. Os dois homens comeram sem tirar as luvas. George observava-os comer.
- O que está olhando? Max olhou para George.
- Nada.
- Vá pro inferno. Você estava me olhando.
- Talvez o rapaz o fez por brincadeira, Max – disse Al.
George riu.
- Você não tem que rir – disse Max. Não tem nada para rir, viu?
- Está bem – disse George.
- E ele pensa que está tudo certo – disse Max virando-se para Al. – Ele acha que está tudo certo. É um cara legal.
- Ora, ele é um filósofo – disse Al. Continuaram comendo.
- Qual é o nome do espertinho lá do fim do balcão? – perguntou Al para Max.
- Ei, espertinho – disse Max a Nick. Passe para o outro lado do balcão, com seu amiguinho.
- Qual é a idéia? – perguntou Nick.
- Não há idéia nenhuma.
- É melhor dar a volta, espertinho – disse Al. Nick passou para trás do balcão.
- Qual é a idéia? – perguntou George.
- Não é da sua maldita conta – disse Al. – Quem está na cozinha?
- O negro.
- O que quer dizer com “o negro”?
- O negro da cozinha.
- Diga-lhe para entrar.
- Onde pensam que estão?
- Maldição, sabemos muito bem onde estamos – disse o homem chamado Max. – Parecemos tolos?
- Você fala como um tolo – disse-lhe Al. Que diacho quer discutir com esse cara? Escute aqui – disse a George -, diga ao negro para vir aqui.
- O que vão fazer com ele?
- Nada. Use a cabeça espertinho. O que iríamos fazer com um negro?
George abriu o postigo da cozinha. – Sam – chamou. – Venha aqui um minuto.
A porta da cozinha abriu-se e o negro entrou. – Que foi? – perguntou. Os dois homens no balcão olharam-no.
- Muito bem, negro. Fique parado aí mesmo – disse Al.
Sam, o negro, vestindo seu avental, olhou os dois homens sentados ao balcão. – Sim, senhor – disse. Al desceu do seu banco.
- Vou à cozinha com o negro e o espertinho – disse ele. – Volte para a cozinha, negro. Você vai com ele, espertinho. – O sujeito foi atrás de Nick e Sam, o cozinheiro, até a cozinha. A porta fechou-se atrás deles. O homem chamado Max ficou sentado ao balcão defronte George. Não olhava para George, mas olhava para o espelho atrás do balcão. O Henry’s tinha sido transformado de salão em lanchonete.
- E
então, espertinho – disse Max olhando para o espelho – por que não diz alguma coisa?
- E por que tudo isso?
- Ei, Al – chamou Max – o espertinho quer saber por que tudo isso.
- Por que não diz a ele? – a voz de Max veio da cozinha.
- O que você pensa de tudo isso?
- Não sei.
- Que acha?
Max não deixou de olhar para o espelho, enquanto falava.
- Eu não diria.
- Ei, Al, o espertinho diz que não diria o que pensa de tudo isso.
- Estou escutado, certo -disse Al, da cozinha. Ele tinha escorado o postigo por onde passam os pratos da cozinha com uma garrafa de molho de tomate, para mantê-lo aberto. – Escute, espertinho – disse a George, da cozinha. – Fique em pé um pouco mais à frente no bar. Você movimente-se um pouco mais para a esquerda, Max. – Parecia um fotógrafo que organiza para uma foto de grupo.
- Fale comigo, espertinho – disse Max. – O que você acha que vai acontecer?
George não disse nada.
- Vou lhe dizer – disse Max. – Vamos matar um sueco. Você conhece um sueco enorme chamado Ole Anderson?
- Sim.
- Ele vem jantar todas as noites, não vem?
- Ele vem aqui às vezes.
- Ele vem às seis horas, não vem?
- Quando vem.
- Sabemos de tudo, espertinho – disse Max. Diga mais alguma coisa. Vai alguma vez ao cinema?
- De vez em quando.
- Você
deve ir mais ao cinema. Os filmes são bons para um menino esperto como você.
- Por que vão matar o Ole Anderson? O que ele fez a vocês?
- Ele nunca teve chance para nos fazer qualquer coisa. Ele nem mesmo chegou a nos ver.
E ele só nos vai ver uma vez – disse Al, da cozinha.
- Então, por que vão matá-lo? – perguntou George.
- Nós o estamos matando para um amigo. É só um favor para um amigo, espertinho.
- Cale-se – disse Al, da cozinha. Você fala demais, maldito.
- Preciso entreter o espertinho. Não é espertinho?
- Você fala demais, droga – disse Al. O negro e o meu espertinho se divertem sozinhos. Eu os amarrei como amiguinhas de conventos.
- Eu suponho que você esteve num convento.
- Nunca se sabe.
- Você esteve num convento muito legal. Lá é que você esteve.
George olhou o relógio.
- Se alguém entrar você diz que o cozinheiro está de folga, e se insistirem, diga que você mesmo vai entrar e cozinhar. Você entendeu, espertinho?
- Tudo bem – disse George. – O que vai ser com a gente depois?
- Isso depende – disse Max. Isso é dessas coisas que você nunca sabe antes da hora.
George olhou o relógio. Eram seis e quinze. A porta da rua abriu-se. Entrou um motorneiro de bonde.
- Oi, George – disse ele. – Posso jantar?
- Sam saiu – disse George. Ele volta em mais ou menos meia hora.
- É melhor eu procurar outro lugar – disse o motorneiro. George olhou o relógio. Eram seis e vinte.
- Muito bom, espertinho – disse Max. Você até que é um cavalheiro.
- Ela sabia que eu lhe estouraria a cabeça – disse Al, da cozinha.
- Não – disse Max. Não é isso. O espertinho é legal. Ele é um menino legal. Eu gosto dele.
Às seis e cinqüenta e cinco George disse: – Ele não vem.
Duas outras pessoas tinham entrado na lanchonete. Uma vez George fora à cozinha e fizera um sanduíche de presunto com ovos para “viagem”, que o homem quis levar com ele. Dentro da cozinha viu Al, com o chapéu-coco empurrado para trás, sentado num tamborete, atrás do postigo, com uma espingarda de cano serrado apoiada na borda. Nick e o cozinheiro estavam costas contra costas, num canto, cada um com uma toalha amarrada na boca. George preparara o sanduíche, embrulhara-o em papel impermeável, metera-o num saquinho, trouxera-o e o homem pagara e fora embora.
- O espertinho sabe fazer de tudo – disse Max. – Ele sabe cozinhar e tudo o mais. Você faria de qualquer moça uma boa dona-de-casa, espertinho.
- É? – disse George. Seu amigo, Ole Anderson, não vai aparecer.
- Vamos dar-lhe dez minutos – disse Max.
Max observava o espelho e o relógio. Os ponteiros do relógio marcaram sete horas, e depois sete e cinco.
- Vamos, Al – disse Max. – É melhor ir embora. Ele não vai aparecer.
- É melhor dar-lhe mais cinco minutos – disse Max, da cozinha.
- Nesses cinco minutos, entrou um homem e George disse que o cozinheiro estava doente.
- Por que diabos não arranjam outro cozinheiro? – perguntou o homem. – É assim que é. Saiu.
- Vamos, Al – disse Max.
- Que vamos fazer com os dois espertinhos e o negro?
- Não tem problema.
- Você acha?
- Claro. Já terminamos com isso.
- Não gosto disso, disse Al. Foi mal feito. Você fala demais.
- Ah, mas que inferno – disse Max. Temos que nos divertir, não temos?
- Dá no mesmo, você fala demais – disse Al. Saiu da cozinha. Os canos serrados da arma salientavam levemente sob a cintura do sobretudo apertado. Ele endireitou o casaco com as mãos enluvadas.
- Até logo, espertinho – disse ele a George. – Você tem muita sorte.
- É verdade – disse Max. Você devia apostar nas corridas, espertinho.
Os dois saíram porta a fora. George observou-os, através da janela, passar sob a luz do poste e atravessar a rua. Com seus sobretudos pequenos e chapéus-coco eles pareciam uma dupla teatral. George voltou a entrar na cozinha pela porta vaivém e desatou Nick e o cozinheiro.
- Eu não quero mais nada disso – disse Sam, o cozinheiro. – Eu não quero mais nada disso.
Nick levantou-se. Nunca tivera estado antes com uma toalha enfiada na boca.
- Escutem – disse ele. – Que diabos foi isso? Estava tentando bancar o valentão.
- Eles iam matar Ole Anderson – disse George. – Iam dar-lhe um tiro quando entrasse para comer.
- Ole Anderson?
- Sim.
O cozinheiro apalpou os cantos da boca com os polegares.
- Foram todos embora? – perguntou.
- Sim – disse George. Já foram.
- Eu não gosto disso – disse o cozinheiro. Eu não gosto de nada disso.
- Escute – disse George a Nick. – É melhor você procurar Ole Anderson.
- Certo.
- É melhor você não se meter em nada disso – disse Sam, o cozinheiro. Fique fora disso.
- Irei procurá-lo – disse Nick a George. – Onde ele mora?
O cozinheiro se afastou.
- Garotos sempre fazem o que querem – disse ele.
- Vive na pensão de Hirsch – disse George a Nick.
- Vou até lá.
Fora, a luz do poste brilhava entre os galhos nus de uma árvore. Nick subiu a rua pelos trilhos dos bondes e, no poste seguinte, entrou numa rua lateral. A pensão de Hirsch era a terceira casa da rua. Nick subiu os dois degraus e tocou a campainha. Uma mulher veio até a porta.
- Ole Anderson está?
- Você quer vê-lo?
- Se ele estiver.
Nick seguiu a mulher por uma escadaria e até o fim de um corredor. Ela bateu à porta.
- Quem é?
- É alguém que quer vê-lo, senhor Anderson – disse a mulher.
- É Nick Adams.
- Entre.
Nick abriu a porta e entrou no quarto. Ole Anderson estava metido na cama, completamente vestido. Ela fora um pugilista peso-pesado e era grande demais para a cama. Tinha a cabeça apoiada em dois travesseiros. Não olhou para Nick.
- O que foi – ele perguntou.
- Eu estava no Harry’s – disse Nick, – e dois sujeitos entraram, amarraram a mim e ao cozinheiro, e disseram que iam matá-lo.
Soou absurdo quando ele disse. Ole Anderson não falou nada.
- Eles nos puseram na cozinha – continuou Nick. Eles iam atirar em você quando entrasse para jantar.
Ole Anderson olhava para a parede e não dizia nada.
George achou melhor eu vir contar a você.
- Não há nada que eu possa fazer a respeito – disse Ole Anderson.
- Vou lhe dizer como eles eram.
- Eu não quero saber como eles eram – disse Ole Anderson, olhando para a parede. – Obrigado por vir me contar.
- Tá certo.
Nick olhava para o homenzarrão deitado na cama.
- Não quer que eu vá a polícia?
- Não – disse Ole Anderson. Isso não adianta nada.
- Tem alguma coisa que eu possa fazer?
- Talvez fosse apenas um blefe.
- Não. Não foi um blefe.
Ole Anderson virou-se para a parede.
- O pior é que – disse ele, voltado para a parede – eu simplesmente não consigo me decidir a sair. Fiquei aqui o dia todo.
- Você não poderia sair da cidade?
- Não – disse Ole Anderson. Estou cansado de viver fugindo.
Olhava para a parede.
- Já não há mais nada a fazer agora.
- Não dá para resolver isso de algum modo?
- Não, eu errei. – Falava com a voz neutra e sempre igual. – Não há nada a fazer. Daqui a pouco me decido a sair.
- É melhor eu voltar e falar com George – disse Nick.
- Até logo – disse Ole Anderson. Não olhou para Nick. – Obrigado por vir até aqui.
Nick saiu. Quando fechou a porta viu Ole Anderson, completamente vestido, metido na cama, olhando para a parede.
- Ele está no quarto o dia todo – disse a senhoria no andar de baixo. – Acho que ele não se sente bem. Eu disse a ele: “Sr. Anderson, o senhor deve sair e dar um passeio num dia agradável de outono como este”, mas ele não estava com vontade.
- Ele não quer sair.
- Lamento que não se sinta bem – disse a mulher. – Ele é um homem muito agradável. Ele era do ringue, você sabe.
- Sei.
- A gente nunca saberia se fosse pelo seu rosto – disse a mulher. Ficaram em pé, conversando diante da porta da rua. – É um senhor tão gentil.
- Boa noite, senhora Hirsch – disse Nick.
- Eu não sou a senhora Hirsch – disse a mulher. Ela é a proprietária. Eu só tomo conta disto para ela. Sou a senhora Bell.
- Bem, boa noite, senhora Bell – disse Nick.
- Boa noite – disse a mulher.
Nick caminhou pela rua escura até a esquina onde estava o poste, e depois seguiu pelos trilhos de bonde até a lanchonete Harry’s. George estava lá dentro, atrás do balcão.
- Esteve com Ole?
- Sim – disse Nick. Ele está em seu quarto e não quer sair.
O cozinheiro abriu a porta da cozinha quando ouviu a voz de Nick.
- Não quero nem mesmo ouvir – disse, e fechou a porta.
- Você falou sobre o que aconteceu? – perguntou George.
- Claro. Contei, mas ele já sabia do que se tratava.
- O que ele vai fazer?
- Nada.
- Eles vão matá-lo.
- Acho que vão.
- Ele deve ter-se envolvido em algo em Chicago.
- Acho
que sim – disse Nick.
- Que coisa infernal!
- É uma coisa terrível – disse Nick.
Não disseram mais nada. George abaixou-se para pegar uma toalha e limpou o balcão.
- Queria saber o que ele fez – disse Nick.
- Enganado alguém. Por isso se matam pessoas.
- Vou sair desta cidade – disse Nick.
- Sim – disse George. É uma boa coisa a se fazer.
- Não posso pensar nele esperando no quarto e sabendo que será apanhado. É uma coisa terrível.
- Bem – disse George, – é melhor você parar de pensar nisso.

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Ernest Miller Hemingway (Oak Park21 de Julho 1899 — Ketchum2 de Julho 1961) foi um escritor norte-americano. Trabalhou como correspondente de guerra em Madrid durante a Guerra Civil Espanhola e a experiência inspirou uma de suas maiores obras, Por Quem os Sinos Dobram. Ao fim da Segunda Guerra Mundial se instalou em Cuba.[1]

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A mãe e o filho da mãe - (Wander Piroli)


Se não tivesse esquecido a chave, havia pelo menos a chance de entrar sem que a velha mãe acordasse. E quando mais tarde ela dissesse: “Você está chegando agora, Luiz?”, ele responderia tranquilamente: “Não, mãe. Eu estou aqui escrevendo há muito tempo”. Fora inútil pular o portão, para que ele não rangesse na madrugada vazia, e caminhar pisando o chão do quintal com excesso de zelo. Agora estava diante da porta, imbecil e ainda um tanto bêbado, embora já tivesse posto tudo para fora. Mais uma vez bateria na janela do quarto. E a velha mãe se levantaria lentamente, passaria a mão engelhada no soalho em busca dos chinelos e, encolhida dentro da imensa camisola branca, viria abrir a porta. Merda. Prometera-lhe chegar mais cedo e ao sair de casa estava certo de que afinal cumpriria a palavra. Pensara inclusive que era um ótimo plano ficar em casa, de vez em quando, com a velha conversando calmamente
sobre velhas coisas. Rosália lembrara várias vezes que estava ficando tarde, e ele dissera “já vou” e tomava mais um gole: era também muito bom plano ficar deitado de cueca no soalho, com o copo e Rosália ao alcance da mão. A madrugada estava fria e agora o vento começava a estalar o zinco da coberta. Antes de olhar o céu – escuro e baixo – sentiu o cheiro da chuva que se aproximava. Ergueu a gola do paletó e pensou em ir ao tanque lavar a boca. Mas ouviu a cama ranger e logo a voz da velha mãe, rouca, chamá-lo:
— É você, Luiz?
— Sou eu, mãe.
— Esqueceu a chave?
Sim, disse consigo mesmo.
— Você esqueceu a chave? – repetiu a velha.
— Mãe, não fica aborrecida não.
Desde a primeira vez havia dito esta frase, e vinha repetindo-a com mais frequência nos últimos meses.
— Levanta devagar – recomendou o filho – e calce os chinelos. A chave porém tinha sido introduzida na fechadura.
— Pode empurrar que eu já abri – disse a velha mãe.
— Vai deitar primeiro, aqui fora está um vento danado. Não percebeu o ruído dos chinelos arrastando-se na direção do quarto. A senhora levantou descalça, disse em pensamento.
— Você falou que não demorava – observou a mãe lá do quarto, quando
ouviu a porta fechar-se novamente. O filho não disse nada. Acendeu a luz da sala, pôs o paletó na cadeira, tirou a gravata e com ela na mão entrou no quarto da velha mãe e sentou na beirada da cama. A velha estava deitada de lado, com os cabelos brancos espalhados na fronha, enquanto os olhos miúdos piscavam  dentro das pálpebras arruinadas. A luz da sala iluminava metade do quarto, metade da cama.
— A senhora não devia levantar descalça – disse o filho pousando-lhe a mão na fronte. – O tempo está muito ruim. A velha mãe sacudiu a cabeça:
— Tira esta mão gelada daqui. – E segurou-lhe imediatamente a mão, levou-a aos lábios e beijou-a.
— Luiz – começou a velha.
— Não, mãe – disse o filho retirando a mão vergonhosa.
— Você disse que vinha cedo.
— Pois é. Esqueci que era sábado.
— Ontem não era sábado. O filho calou-se.
— Isso não é vida, Luiz – continuou a velha mãe.
— Eu sei. Mas não quero que a senhora fique preocupada. Nós vamos acabar com isto, nós dois.
A velha ergueu um pouco a cabeça do travesseiro para vê-lo melhor. O filho desviou o rosto.
— Você está bêbado, Luiz?
— Oh, mãe. É claro que tomei alguma coisa. Mas nós vamos acabar com isto também.
— Você já prometeu tantas vezes.
— Agora é diferente – tornou o filho com o rosto ainda voltado para a parede. – E a senhora vai me ajudar. Nós dois, não é, mãe? A velha não respondeu. A essa altura, porém, ele já podia supor que seus olhos estivessem úmidos, e a sensação desagradável de sempre lhe galgava o peito. Teve vontade de aproximar-se da cabeceira e beijá-la, como costumava fazer antes, ou então pousar a mão muito de leve na sua cabeça; deixar apenas a mão, sua sórdida mão, naqueles cabelos de neve. A velha mãe dormiu depressa, a boca muito murcha, o rosto em paz.
Ele ouviu nitidamente os primeiros pingos de chuva no telhado. Levantou-se, tirou o sal-de-fruta do guarda-louças, pôs um pouco na concha da mão esquerda, coma outra encheu meio copo d’água, jogou o sal na água e tomou-a de um trago. Acendeu um cigarro eem seguida
encostou a porta do quarto da velha mãe. Já deve ser bem mais de três horas, pensou, e embora sentisse o corpo moído, tinha experiência suficiente para saber o que aconteceria se tentasse dormir agora. Tirou maquinalmente o maço de papéis da cômoda com a mesma inutilidade como que já o fizera tantas e tantas vezes, e sentou-se à mesa da sala. As palavras embaralhavam-se, as linhas dançando. Desviou os olhos na direção da janela, mantendo-os muito abertos, e ficou prestando atenção ao ruído da chuva lá fora. A chuva descera rápida, violenta, e batia pesadamente nas telhas e estalava e gemia o zinco da coberta do tanque. Antes que tivesse consciência das coisas que deveria fazer, já estava de pé e dirigiu-se para o quarto da velha mãe.
— Luiz.
— Uai, mãe, pensei que a senhora estivesse dormindo. Espera aí que eu vou puxar a cama.
— Mas que chuva. – A velha levantou a cabeça do travesseiro. O filho arrastou a cama até junto ao guarda-roupa, para evitar a goteira que costumava cair nos pés da cama.
— Luiz, põe também o pano aqui n chão e as latas na cozinha porque senão amanhã fica tudo alagado. Obedeceu, como se cumprisse um antigo e permanente ritual. Parou depois perto do leito:
— Pronto, mãe. Agora a senhora trate de dormir.
— Você não vai deitar também?
— Daqui a pouco.
— Já é muito tarde, Luiz. Eu achava melhor você ir deitar de uma vez.
— Estou sem sono e quero ver se aproveito para escrever um pedaço.
— Deixa pra amanhã, meu filho. Você devia fazer essas coisas sempre de manhã, por causa dos olhos.
— Está bem. É só um pouco, e logo depois eu deito. A velha ajeitou-se debaixo da coberta, não adiantava insistir. E agora, enquanto o sono não viesse de novo, teria algum tempo para pensar no filho, na vida que o filho levava ou na vida que levava o filho. Ele voltou para a sala e olhou o maço de papéis em cima da mesa. Porcaria, disse para si mesmo. Há dois meses estava empacado naquela cópula e a coisa lhe verrumava os miolos e, por mais que se esforçasse, não conseguia que os dois fizessem o amor com verdade. E tudo se passava também numa noite de chuva, havia inclusive cheiro de chuva através da janela, e isto constituía uma boa base, mas a história não convencia. Um trovão rebentou súbito, e o estrondo repercutiu na casa.
— Luiz.
— Estou aqui, mãe. A senhora levou susto?
— Não. Eu estava acordada e vi antes o relâmpago.
— Vou levar um copo d’água pra senhora.
— Precisa não.
— Eu levo, mãe.
— Pode deixar que eu não quero. Você se assustou?
— Não.
A luz da sala piscou duas vezes como se fosse apagar. O filho levantou-se.
— Você está procurando a vela?
— Não, mãe, mas vou aproveitar para deixá-la de mão. Pode dormir sossegada.
— Luiz, vem cá.
— Sim.
Encontrou a velha sentada na cama.
— Eu não estou lembrada de ter guardado o frango na coberta.
— Deve ter guardado – disse o filho.
— Estava pensando nisso, Luiz. Fiz tanta coisa hoje de tarde que não me lembro.
— Aposto que a senhora guardou.
— Também acho, mas estou procurando lembrar. Você já imaginou se ele estiver fora nesse aguaceiro?
— Ele está debaixo da coberta, pode dormir sossegada. O filho esperou a mãe ajeitar-se, atravessou o quarto, passou pela cozinha e foi à privada, que dava para a coberta. Abriu a janelinha: o quintal estava escuro e a chuva continuava caindo intensamente. Sentou-se no vaso, apoiando as costas na parede. Experimentou fechar os olhos e viu até que ponto ainda estava sob efeito da bebida. O cubículo fazia-o sentir-se pior. Apressou-se e, retornando, deu com a velha novamente sentada na cama.
— O que é mãe?
— Não tem jeito de lembrar se guardei o frango.
— A senhora guardou.
— Se guardei, quando você passou pelo quintal deve ter visto se ele estava amarrado lá.
Vira-o sim, mas durante o dia. Um frango carijó, magrelo, amarrado pelo pé, com barbante, num dos moirões da cerca.
— Será que você viu?
— Não reparei, mãe. Estava muito escuro.
— É mesmo.
Sempre a velha comprava na véspera o frango do domingo e atava-o naquele moirão e, à tardinha, guardava-o debaixo da coberta.
— Sabe, Luiz – tornou a velha. – Estou achando que não guardei ele não. O filho não disse nada.
— Acho que esqueci.
— Esqueceu não, mãe.
— Você acha que não?
— A senhora nunca esquece.
A chuva persistia e o barulho das goteiras caindo nas latas da cozinha entrava pelo quarto.
— Coitado – continuou a velha.
— Por que vamos comê-lo no almoço?
— Não. Estou dizendo se ele ficou lá.
— Ora, mãe, a senhora guardou o frango.
— Será que eu guardei mesmo?
— Com toda certeza.
— Tenho pena dele, Luiz.
— Está bem, eu vou lá ver.
— Não, meu filho. Você não pode ir debaixo dessa chuva.
— Eu pego o guarda-chuva.
— Deixa ficar. Aqui dentro está quente.
O filho voltou à sala, pôs o paletó na cabeça e abriu a porta vagarosamente. Sentiu o ar frio e úmido da madrugada no rosto. Avançou com cuidado no chão lamacento. Curvou-se no escuro perto do lugar onde supunha estar a cerca. Agachou-se mais e pôs-se a tatear o chão. Esbarrou em algo molhado, inerte. Percebeu logo o contato das penas e através delas a melhor parte do que seria o almoço do domingo. Arrancou rápido o barbante da cerca e, antes que pensasse e depois dissesse “puta merda”, já havia atirado o frango por sobre o telhado da cozinha, no lote baldio.
— Então, Luiz? – perguntou a velha.
— Ele está lá – disse o filho jogando o paletó ensopado debaixo da pia.
— Ainda bem – disse a velha. – Você já pensou se ele tivesse ficado na tempestade?
— Pois é. Agora a senhora trate de dormir.
— Deus te abençoe. Luiz – disse a velha.
O filho apagou a luz da sala, foi para o quarto, tirou os sapatos enlameados, sentou na cama e ali ficou até fazer de novo 25 anos.

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Conto de Wander Piroli  extraído do Suplemento Literário de Minas Gerais - Belo Horizonte, Novembro/2011 - www.cultura.mg.gov.br  .



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