quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A Terceira Margem do Rio - (Guimarães Rosa)


  
     Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente - minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
     Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescaria e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
     Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: - "Cê vai, ocê fique, você nunca volte". Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: - "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou a olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo - a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
     Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
     Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas - passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda - descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
     No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no aluminado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
     Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele.
     A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com o sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos - sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo - de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
     Nossa irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
     Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: - "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
     Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei - na vagação, no rio, no ermo - sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de  nada, mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro: meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
     Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio - ponto perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice - esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse - se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.
     Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: - "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
     Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
     Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.


quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Insolação - (Estripulias do Saci)


Aqui tudo vai de mal a pior. Toda tarde uma grande nuvem surgia no horizonte arrastando-se em nosso rumo. Olhávamos como encantados para ela esperando o primeiro pingo. Nada. Ficávamos até tarde esperando o milagre do primeiro pingo. A noite avançava, a nuvem esvaía-se ficando a angústia ressecando a garganta. Ao apertar-lhe as tetas, em resposta, as pobres vacas soltavam um mugido de dor. No dia anterior a última tombou sem vida, em puro couro, osso e um fiapo de som rouco no lugar do mugido.
Ficou ali mesmo onde caíra. Não havia ânimo para arrastá-la para algum lugar. Nem tinha o que feder. Puro couro e osso. Nem os carcarás ousaram deixar o galho seco para apreciar a carniça. Ficaram pendurados aos galhos como frutas malditas de um tronco sem vida. A bica d’água parou de escorrer. Agora era preciso caminhar até o leito do córrego, pisar com cuidado para não espantar os ciscos, e encher a vasilha maior com uma menor.
Ontem mesmo, meu pai voltou do campo ainda mais desolado. Fiquei sabendo mais tarde, pela minha mãe – o potro que eu havia ganhado no aniversário passado, amanhecera morto no brejo. Certamente à procura de beber.
Quando me levantei, a manhã estava límpida. Nenhum risco de nuvem no infinito azul. Ao caminhar, os pés queimavam nas labaredas invisíveis. Dava dois ou três saltos antes de me acomodar sob alguma moita de arbustos ressequidos. Andei sem um propósito sequer. O calor insuportável enervava todos. Eu me mexia saltitante em volta da casa. Minha mãe resmungava num canto.
O calor insuportável, os resmungos, as aves de rapina quietas, o silêncio do mau pai, a nuvem que vinha todas as tardes arrastando a barrigona sobre os galhos secos. Ainda para completar, começaram os espirrar sem parar. O motivo devia ser uma onda de fumaça que se aproximava rastejante, afagando tudo que encontrava pela frente. Ainda ouvi meu pai gritar do limiar da porta, “os diabos abriram a porta do inferno! Não há outra explicação”. Depois, senti que a terra se remexia sob meus pés, fazia ondas gigantes e em seguida me precipitou num abismo vertiginoso.
Eu insistia em andar aos tropeços, agachado sobre os calcanhares, deitando de barriga no chão. A terra dava voltas e mais voltas. Eu, determinado, enterrava as unhas no chão, sangrava, doía. Mas eu não podia me soltar. Com muito custo, alcancei a porta, olhei para os lados e não havia ninguém, embora eu continuasse a ouvir os resmungos de minha mãe no meio do redemoinho de silêncio. Meus dedos sangravam. Arrastei-me com os cotovelos até meu quarto. Subi com dificuldade na cama e fiquei quieto como bicho à espreita. As roupas estavam molhadas, e o corpo tremia de frio.
O rumor agora era o murmurar do vento contra os galhos das árvores na noite. Aos poucos o escuro foi se agitando. Ventos torciam os ingazeiros rufando trovões, estremecendo a terra. Deitado, observei através das frinchas da parede riscos dos raios no céu negro. A lamparina ao pé da cama não parava acesa por conta da ventania a invadir o quarto; e a luz era consumida pela escuridão.
No piquete, o tropel misturava-se ao retumbar das descargas dos trovões. Os animais incitavam em estridente disparada e esticavam até bater o peito no outro extremo do cercado. Viravam e reiniciavam a corrida, relinchando. Em meio a essa balbúrdia, finíssimos assovios rompiam a tempestade e feriam-me, como finas agulhas, os ouvidos – provocando estremecimento no corpo inteiro.
– Liga não, é o saci montando os cavalos. Ele aproveita as noites escuras para cavalgar e fazer tranças nas crinas dos animais. Quase se matam de correr, os pobres bichos. Dizem que ele é sozinho e assovia, procurando um companheiro. Por isso não é bom assoviar à noite; porque daí ele vem falar com você, querer amizade – diziam os mais velhos, jogando conversa fora, sentados à sombra copada do jamelão. Essa ideia me deixava apequenado.
Enrolava-me o mais que podia. Mas mesmo assim ainda era possível ver os relâmpagos através da espessa malha do cobertor. Os vultos se contorcendo do lado de fora me deixavam com dificuldades de respirar. Minha imaginação mirava monstros de todas as espécies, mesmo os olhos fechados. Meu coração agitava-se e as mãos trêmulas se esfregavam suadas.
O quarto vagava através da tempestade. Não saberia distinguir a realidade nesse momento. O que sei é que um homem, com um meio sorriso, aproximou-se de mim. Caminhando lentamente, estendeu-me os braços:
– Você assoviou para mim?
Meus sentidos me faltaram, o grito morreu na garganta. Tentei correr, percebi que tropeçara em algo estendido no chão. Caí de rosto na terra fria e, no desespero, olhei para o lado. Dei com as vistas nos pés da criatura. Estavam virados para trás.
Quis correr, mas dois braços colocaram fim à minha intenção. Gritei com todas as forças, e agora podia ouvir meu próprio grito chegar frenético aos meus ouvidos – para logo em seguida uma voz familiar me acalmar:
– Está com febre, todo molhado de suor. – Abri os olhos e o sol já nascera. Olhei para os lados, ainda ofegando muito. Uma caneca com chá-de-laranja fumegava em minhas mãos.
– Bem quente... Corta a febre.
Mais tarde já pude sair do resguardo. Recobrados os sentidos, dei uma volta pelo terreiro. Espichei até o pé de jamelão. Por curiosidade, olhei-o de baixo a cima. Estava todo retorcido. Examinei atentamente o chão: seco, completamente seco, sem um pingo de chuva. Conjeturei a possibilidade de sonho. Mas, e os galhos retorcidos? Os rastros dos pés descalços no terreiro, as cercas arrebentadas? Os cavalos que não se encontravam presos? As tabuinhas reviradas na cumeeira – pela ventania, só pode!
Passei o dia encabulado, minha mãe enchendo-me de todo tipo de chá e simpatia. “Tá esquisito, esse menino”, ouvia ao longe como se as vozes ecoassem através de um longo túnel.
Acredito que estava dormindo, quando um estrondo me fez acordar e saltar da cama com o cobertor na mão. Não dormi de imediato. Depois de um tempo, voltei a pegar no sono. Quando levantei, a manhã estava escura de nuvens, como nas vésperas, porém a fumaça era menos intensa. E observando melhor, as nuvens pareciam mais baixas e mais pesadas, como se tivessem inchadas, ou prenhes de chuva. Cheguei a sorrir com esse fugaz pensamento.
O calor não estava tão insuportável como nos dias anteriores. Se minha imaginação não me traía, uma corrente chegava tímida de algum buraco. Ergui a cabeça e farejei o cheiro de ar fresco, como há muito não sentia. A terra vibrou como que estremunhada de sono profundo.
Por instinto, joguei-me ao chão. Mal tive tempo de gritar, quando as aves de rapina bateram asas e abandonaram o galho seco depois de muito tempo. A chuva chegou num repente, como se as nuvens abrissem suas barrigonas. Aos poucos os barulhos das coisas foram retornando. Dava para cheirar o ar. E o cheiro de podre chegou através da bica d’água. Passou pela cozinha e correu escura por um tempo. Depois, clareou e levou consigo o cheiro de podre. O riozinho que quase se finara, ergueu-se com uma orquestra de ruídos.

Um relincho vindo do curral despertou minha atenção. Os cavalos haviam retornado. Meu coração saltou alegre. Entre todos, reconheci o potro que havia ganhado de presente de aniversário. Corri e o abracei pelo pescoço; ele relinchou novamente como se não me visse há muito tempo. Suas crinas trançadas caprichosamente em três pontas. Tentei desatar as tranças, mas uma dor aguda impediu os movimentos de meus dedos. Meu pai ao lado me olhou com naturalidade. Até sorria depois de muito tempo. Os meus dedos estavam em carne viva e sangravam tingindo a crina do animal.

sábado, 12 de outubro de 2013

Pique-ajuda



Acomodei-me e respirei fundo. A corrida minara-me as forças, mas tinha conseguido meu intento. Havia conseguido derrotá-lo da forma mais cruel. Escondi-lhe as roupas de escola. Ele apanhou muito. Fiquei com um pouco de pena e devolvi suas roupas às escondidas na varanda da casa. A camisa branca, vermelha de barro, mas devolvi. Também, quem manda se meter com a namorada dos outros. Ela não voltara comigo, mas havia largado ele, ali, no meio do pátio, na frente de todos os alunos.
Primeiro, às escondidas, pegamos um toco de batom de minha irmã mais velha; pintei a boca e quando ele saiu no intervalo da aula, beijei várias bocas vermelhas no caderno dele assinando com o nome de uma menina que não existia. Mas ela não haveria de saber esse detalhe.
Ela também merecia. Eles haviam combinado estudar juntos à tardinha. Foi um reboliço. Ela o estapeou na frente de todos. De quebra, minha irmã queria saber como o batom dela foi parar no caderno dele.
A noite tinha se aproximado a passos macios. Meu peito roncava querendo ar. Uma das mãos acudia o peito, a outra especada no pé de jamelão.
Meu tempo estava acabando, tinha novamente que ficar à disposição do pega. Mirei o vulto do pé de mamoneira e disparei uma corrida estrepitosa. Os calcanhares batiam na bunda, o vento soprava nos ouvidos, vuuuuuuuuuu! vuuuuuuuuuu! Meu sorriso ficou largo quando minha barriga sentiu o chão áspero sob a mamoneira.
A meninada batucava os pés descalços na terra batida. Eu, com uma orelha pregada no chão, ouvia o corre-corre que se aproximava e se afastava. A terra vibrava sob aqueles pés lépidos. O ar reverberava sob o efeito da algazarra das gargantas juvenis. Não se ouvia outra coisa além dos tuque-tuques acelerados e os berros. Ora ou outra vinha um grito dizer ao meu ouvido:
– Te peguei! Agora você é o pega!
Eu era um dos maiores do grupo. Mas não dos mais danados – esses, geralmente, são menores. A algazarra continuava. O ponto de referência era o pé de jamelão. Eu gostando de estar ali, na sombra da lua desmilinguida que desfilava lá no alto, parecendo foice sem cabo. Mesmo com sua luz fraquinha, ela atravessava as folhas da mamoneira e pincelava meu rosto com rajadas claras.
Pus-me de pé e firmei o pensamento no rumo da árvore. Minhas pernas desprenderam novamente uma corrida louca. Os ramos faziam arder minhas canelas de socó. Agora era um bando de pegas. Eu era o último a ser pego; porém, eu não sabia. Mirei a grande sombra, mas, quando já ia imaginando esticar o braço para tocar o jamelão, tropecei numa raiz e fui de cara na terra.
A noite entrou em meus olhos e ateou fogo na carne assim que ouvi uma gargalhada sátira emparelhada comigo. Minha mão estalou numa fuça, ardeu e formigou, estancando a maldita galhofa. Emergiu, imediatamente, um choro. A foice, lá do céu, cortou um pouco do escuro do meu olhar. O fogo do sangue acalentava as cinzas.
Tudo indicava calmaria quando muitas bocas gritaram em uníssono:
– CUIDADO!
Meu pescoço se torceu um pouco para a direita. Um objeto passou sibilando grosso junto à minha orelha, vuuuup! Chegou a arder – ainda que não muito –, instantes depois. Foi estrondar no peito do jamelão. Não diria nada em casa. De nada adiantava: custar-me-ia bem uma surra de vara verde, daquelas de levantar calombo, e depois a marca ficaria pregada na pele por uma semana.
Aquelas conjecturas me tiraram a inspiração para o pique-ajuda. Resolvi parar. Afinal, já “tava bem grandinho”, como dizia minha mãe.
Na manhãzinha, com o chilrear dos pássaros e a noite já tendo abandonado as galhadas do jamelão, acheguei-me bem perto para avaliar o estrago. Aquela maldita banda de tijolo molestou a minha orelha a noite inteira. A pobre estava agoniada, sensível. Minha mão esquerda a afagava levemente.
Por entre a forquilha do jamelão achei-o a me observar de lá do outro lado da cerca. Na diretoria, ele não abriu o bico. Apesar de não ter provas, sabia que tinha sido eu o sabotador de seu namoro. Mas não havia contado para ninguém. Era coisa a ser resolvida entre nós. Eu sabia disso, ele também. Ele era mais forte, eu me achava mais esperto. Por isso agia nas sombras, enquanto ele queria forra no meio da rua, me humilhar com as próprias mãos. Isso eu não deixaria acontecer. Ele ia e vinha, circulando em volta, à espera de uma única oportunidade, me olhando por baixo, bufando como um pequeno touro enjaulado.
Touros assim correm o risco de passar uma vida toda esperando. Às vezes, uma juventude, o que já é muito – e desistem.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Agreste



Os ventos de agosto vergastam
a pradaria à minha volta
vibra castigada pelo sol

o feroz calor
queima enquanto
contorcem as ramagens
bafejo morno que traz
a terra amarga

o tapete contrai-se
esfarrapado nas farpas do varal
o suor corta meu rosto
enquanto o horizonte se
estende mansamente

hirto, assisto inanimado,
à minha volta em agonia;
da ponta do casebre,
pende uma gaiola, vazia

o vento pachorrento de agosto
leva para além da aridez da vida,
do pássaro, o canto

a gaiola se contorce
no ritmo das ramagens,
presa ao elo metálico,
enferrujado. 

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Rio salobro


Hoje meu olhar amanheceu saudoso
de crianças passarinhando
na primavera das frutas;
um rio salobro
esgueirou-se à revelia.



quinta-feira, 4 de julho de 2013

Bala perdida


No meio da turba que vai e vem rumorejante ergue-se uma mão macilenta, encrespada como se brotasse entre o rejunte do paralelepípedo – gritando surdamente por socorro. A multidão embalada num coro confuso de vozes passa apressado em todas as direções. Resvalam, atropelam, mas ninguém vê ou finge não ver o sofrimento mudo estrebuchando estirado no cimento.
Ela viera zumbindo, quente, certeira e alojara-se traiçoeiramente em suas costas sem ao menos pedir CPF ou permissão. Uma alma caridosa alivia de seu braço o peso do relógio, da aliança. Com carinho outra revista cuidadosamente os bolsos. O sol cede espaço, a noite compadecida sopra jornais relidos e amassados sobre o corpo enregelado, encostado ao meio fio “assim não atrapalha o trânsito”. 

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Um pequeno tufão - (Paulo Bentancur)


Buda observa, da janela central no primeiro andar do sobrado, o pequeno túnel que a rua fronteiriça construiu ao acaso. A carreira de prédios altos que nasce lá longe, defronte do rio, bebe da brisa aparentemente suave que lambe as águas poluídas, brisa que cresce pela rua estreita, vai se transformando em vento forte, e quando chega diante do sobrado, na pequena praça, virou uma ventania, é sempre assim, quase todo dia, e um dia não era brisa no rio, era vento forte mesmo, e foi correndo e aumentando através da rua e desembocou num estrondo de janelas no sobrado. Uma espécie de tufão, pequeno – estamos no Brasil –, mas assustando todo mundo, e a tia desceu as escadas correndo, resvalou, caiu tentando se agarrar nas laterais, esfolando a mão, os joelhos, e levantando em seguida e saindo para a calçada, o redemoinho erguendo folhas amarelas das árvores quase secas, papéis sujos, pó, cabelo e saias.

Buda na janela se alarma. Pára, tia, sai daí, grita, e sua voz morre no ruído da ventania. Ele grita mais uma vez, é inútil, ela não escuta, e se escutasse ainda assim seria inútil, estrondam raios no céu plúmbeo, o chicote nas árvores frágeis, a tia grita uma mistura de medo e volúpia, ai, ai, aiiiiiiii, o vestido verde limão subindo até os seios, ela grita e não é de pavor, se fosse pavor ela retrocederia, ela avança, pára no meio da rua, não há perigo, não há tráfego, os automóveis desapareceram como por encanto, o vento, o vento, o vento, a ruazinha armou essa cilada, Buda quase resvala na escada, sai na calçada, aquela casa e aquela família cuspiram mais um desesperado, o vento esbofeteia-o, lembra, menino, a dor das agulhadas da areia na beira da praia, o vento marinho fustigando-lhe as pernas, mas agora está de calças, grossas calças de brim, não há tempo de recordar, a tia no meio da rua grita rindo, eu sou puta!, eu sou puta!, o rio fica longe, e está poluído, a ruazinha deve ter uns três quilômetros, é só ruazinha porque é estreita, mas tem a profundidade de uma avenida, de um rio, a porta do sobrado está aberta, o vento sobe as escadas.

Buda não consegue agarrar a tia, ela luta, o vento, ela agora corre, o sobrinho, ridículo, atrás dela. Ninguém ri de ver a cena. A mãe de Buda chora por dentro. No rosto é apenas uma máscara de paciência. A irmã de Buda fica quietinha no quarto, nem quer saber o que está acontecendo. O pai de Buda, cunhado da tia, desce as escadas, vai fechar a porta. Uma hora Buda volta, com a tia a tiracolo. Dessa ele não descuida. A mãe abriu uma tesoura em forma de cruz sobre a mesa da cozinha. Mas nem se lembra de rezar. Ainda há uma janela batendo, talvez no fundo do corredor. O quarto da tia.

Mais tarde, o que se anunciava caiu na terra: água, muita água. A chuva começou chicoteando, socando forte as vidraças, erguendo contra a luz dos faróis e dos postes uma poeira amarela, o chão fincado de estilhaços como mínimas e geladas labaredas. Buda imaginou-se ali, mergulhado no ar tomado pelo aguaceiro, debaixo do céu carrancudo.

A tia já tinha entrado, e ficou agitada andando de um lado para outro no corredor, sem coragem de entrar no quarto, como se lá, na estreita, modesta peça, estivesse o tufão sem a liberdade da rua, preso, vociferando sua força contra as cortinas. Mas não havia mais nada disso, chovia apenas, a água acalmando a fúria das primeiras pancadas, apressando porém seu ritmo, agora mais contínuo e menos pesado.



(Conto do livro "A solidão do Diabo" - Bertrand Brasil, 2006)

Mini Biografia:
Paulo Bentancur, nascido em Livramento, RS, em 1957, é escritor, crítico literário e oficineiro. Autor de diversos gêneros, do conjunto de sua obra destacam-se "Instruções para iludir relógios (cronicontos, Artes e Ofícios, 1994), "Bodas de osso" (poemas, Bertrand Brasil, 2005) e "A solidão do Diabo" (contos, Bertrand Brasil, 2006). Ganhou 5 vezes o importante prêmio Açorianos de Literatura.




sexta-feira, 21 de junho de 2013

Voluntário - (Inglês de Souza)




A velha tapuia Rosa já não podia cuidar da pequena lavoura que lhe deixara o marido. Vivia só com o filho, que passava os dias na pesca do pirarucu e do peixe-boi, vendido no porto de Alenquer e de que tiravam ambos o sustento, pois o cacau mal chegava para a roupa e para o tabaco. Apesar da pobreza rústica da casa, com as suas portas de japá e as paredes de sopapo, com o chão de terra batido, cavada pela ação do tempo, tinha o tapuia em alguma conta o asseio. (...) Rosa tecia redes, e os produtos da sua pequena indústria gozavam de boa fama nos arredores. A reputação do tapuio crescera com a feitura de uma maqueira de tucum ornamentada com a coroa brasileira, obra de ingênuo gosto, que lhe valera a admiração de toda a comarca, e provocara a inveja do célebre Ana Raimunda, de Óbidos, o qual chegara o formar uma fortunazinha com aquela especialidade, quando a indústria norte-americana reduzira a inatividade os teares rotineiros do Amazonas (...) Pedro era em 1865 um rapagão de dezenove anos, desempenado e forte. Tinha olhos pequenos, tais quais os do pai, com a diferença de que eram vivos, e de uma negrura de pasmar, A face era cor de cobre, as feições achatadas e grosseiras, de caboclo legítimo, mas com um cunho de bondade e de candura, que atraía o coração de quantos lhe punham a vista em cima. 

Demais, serviçal e alegre até ali. (...) E naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face à face toda a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante do agitação social, concentra-se a alma num apático recolhimento (...) O caboclo não ri, sorri apenas: e a sua natureza contemplativa revela-se no olhar fixo e vago em que se lêem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência ao mundo objetivo, e dele assoberbada. Os seus pensamentos não se manifestam em palavras por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão comunicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão. (...) Ninguém o podia dizer, mas é certo que até o princípio do ano de 1865, correram tranquilos os dias no cacoual do velho Rosa. Quem não sabe o efeito produzido a beira do rio pela notícia da declaração da guerra entre o Brasil e o Paraguai? Nas classes mais favorecidas da fortuna, nas cidades principalmente, o entusiasmo foi grande e duradouro. 

Mas entre o povo miúdo, o medo do recrutamento para voluntário da pátria foi tão intenso que muitos tapuios se meteram pelas matas e pelas cabeceiras dos rios e ali viveram como animais bravios sujeitos a todo a espécie de privações. (...) Descuidado e contente. Pedro labutava em paz, apesar das desgraças do tempo, ouvidas aos domingos, depois da missa, no adro da matriz. E quando lhe perguntavam se não receava o recrutamento", dizia com a candura habitual, que nunca fizera mal a ninguém, e era filho único de mulher viúva. Não contava, porém, com a ma vontade de Manuel de Andrade, mulato que era seu rival na pesca das tartarugas (...) Pelas 7 horas da manhã, a velha Rosa tratava do almoço e Pedro sentado á soleira do porta, preparava-se para caçar papagaios, limpando uma bela espingarda de dois canos, quando viu adiantar-se para o seu lado o capitão Fabrício, com os modos risonhos e corteses de um bom vizinho. Pedro ergueu-se surpreso e acanhado e pôs-se a balbuciar cumprimentos ao fazendeiro, cujo sorriso o enleava.

- Ora bom dia, seu Pedro. Então já sei que vai à caça? E está com uma bonita arma / Quer vendê-la? (...) — Eh, eh! seu Pedro, você esta um rapaz robusto e devia ser voluntário da Pátria. O governo precisa de gente forte lá no sul para dar cabo do demônio do López. Ora, é uma vergonha que você esteja a matar os pobrezinhos dos papagaios quando melhor quebraria a proa aos paraguaios, que são brutos também e inimigos dos cristãos.
Pedro balbuciava negativos e desculpas. Era filho único...não tinha jeito para a guerra... Quem tomaria conta da pobre velhinha? Mas o capitão pôs-lhe a mão no ombro dizendo em voz repassada de mel:

- Pois então tenha paciência. Se não quer ser voluntário, está recrutado.

(...) Pedro deu um pulo para trás, como se fora mordido por uma cobra. Recrutado, ele! A palavra fatídica soou-lhe aos ouvidos como anúncio de irreparável desgraça. O seu ar de candura e de bondade desapareceu por encanto, e o rapaz ficou todo transformado, como o pai, quando lutava braço a braço com alguma onça traiçoeira. Os olhos injetaram-se-lhe de sangue. Os lábios entreabriram-se para deixar sair a palavra rebelde, mas só descobriram os alvíssimos dentes, cerrados por um esforço violento. (...) O rapaz soltou um grito surdo, avançou contra Fabrício, arrancou-lhe a espingarda das mãos e brandiu-a sobre a cabeça do capitão, como se fora uma bengala. 

Quando ia descarregar a golpe, sentiu-se agarrado. Eram o sargento Moura e dois soldados, que, saindo dum matagal próximo, se haviam aproximado sem ser vistos. Ao ruído da luta, acudiu a velha Rosa, que soltando brados lamentosos, tentou arrancar o filho aos soldados, mas o capitão Fabrício segurou-a por um braço e atirou-a de encontro a um esteio da casa. (...) ferida e quase nua aos raios ardentíssimos do sol, a velha Rosa, a boa e generosa velhinha teria sucumbido miseravelmente, se por volta de meio dia não tivesse ali chegado o vizinho Inácio Mendes. O português vira do seu porto passar a canoa que levava o recruta e, desconfiando do que sucedera, viera, logo que pudera furtar algum tempo aos seus afazeres, informar-se do ocorrido. Pobre tia Rosa! Em que miserando estado a encontrara! (...) quando acordara, a claridade de um dia esplendido entrava pela transparência do japá. 

A rede da velha Rosa estava vazia. A mulher do Inácio Mendes correu ao porto e não achou a montaria de pesca de Pedro. Estava eu a esse tempo em Santarém, preparando uma viagem a Itaituba, a serviço da minha advocacia. Passeando uma tarde na praia do Tapajós, abeirou-se de mim uma cabocla velha em quem a custo reconheci a industriosa e boa velhinho do igarapé de Alenquer, em cujo hospitaleiro casa dormira algumas vezes de passagem pelo sítio (...) Contou-me a sua história, interrompendo-se a miúdo para limpar na manga do vestido as lagrimas que lhe corriam, e finalizou entregando-me um embrulho com dinheiro, duzentos e poucos mil réis, tudo quanto tinha, para que lhe livrasse o filho de jurar bandeira. Voltei imediatamente à cidade e, por intermédio de um amigo comum, obtive do delegado de polícia a licença de ver o recruta na cadeia, mas por uma só vez, e como exceção rara. 

O tapuio estava mergulhado num silêncio apático, de que nada o fazia sair (...) Empreguei a maior atividade nas diligências necessárias, porque sabia que era esperado a toda hora a vapor da Companhia do Amazonas, que devia levar o contingente de recrutas para a capital. Uma manha, vinha eu da casa do juiz com os melhores esperanças de êxito, pois se mostrava crente do direito que assistia ao meu cliente, e compadecido da sorte da velha que lhe não deixava a soleira da porta onde dormia. (...) Começou logo o embarque dos recrutas. Eram vinte rapazes tapuios os que a autoridade obrigava a representar a comédia do voluntariado. Vi-os sair da cadeia, entre duas filas de guardas nacionais, e encaminharem-se para o porto, seguidos dos parentes, dos amigos e de simples curiosos. Iam cabisbaixos, uns corridos de vergonha, como criminosos obrigados a percorrer as ruas da cidade nas garras da justiça; outros, resignados e imbecis como bois, caminhando para o matadouro; (...) Os curumins anunciavam os recrutas à medida que se aproximavam: - Os voluntários! Os voluntários!

Voluntários de pau e corda! disse cousticamente o vigário padre Pereira, fumando cigarros a porta de uma loja Apesar da tristeza do espetáculo que me compungia o coração, não pude deixar de alegrar-me por não ver entre os recrutas o filho da velha Rosa. Acompanhei a leva desde o quartel até a praia, vi-a emborcar, não me afastei enquanto o vapor não levantou ferros e procurou a barra do Tapajós, soltando um silvo rouco e prolongado. Adquiri então a certeza de que Pedro não embarcara (...) Comuniquei a nova à tia Rosa que fui encontrar sentado à porta do juiz de direito, onde passara a noite. Não partilhou da minha convicção. Na sua opinião, eu estava enfeitiçada. Pedro não estava no quartel e, portanto, seguira naquele mesmo vapor para a capital. Levei à conta de demência a incredulidade da velha e entrei na casa do juiz para informar-me do resultado do habeas-corpus. O magistrado disse-me com alguma tristeza:

- Escusado é tentar mais nada. O rapaz já embarcou. (...) Ainda ha bem pouco tempo, vagava pela cidade de Santarém uma pobre tapuia doida. A maior parte do dia passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no horizonte, contando com voz tremula e desenxabida a quadrinha popular:

Meu anel de diamantes caiu n’àgua e foi ao fundo: os peixinhos me disseram: viva Dom Pedro Segundo.


Fonte: www.passeiweb.com

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Ponta do ferrão


Acordo no meio da noite
Olhar imerso na escuridão
Explicação para minha angústia

Coração dita os passos
Algo foge de mim
Aconteceu de súbito!
A imaginação tece lentamente
Meus atos

Há um mar de vazio em mim
Sou ponto que se distancia das bordas
Sem movimento algum

A cigarra zumbe eterna em meus ouvidos
Não tenho gestos de protesto

Que o dia passe
Que as noites passem
Como folhas magras
Tangidas pela ponta do ferrão
De um outono impiedoso

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Emboscada


O estampido soou como uma tijolada no telhado de zinco. Sobressaltado deixou o fuzil de longo alcance acoplado com uma luneta escorregar dos dedos trêmulos. Do lado esquerdo, abaixo do queixo tremido, eclodiu uma mina de cores vivas, quente, viscoso. Teve o inerte impulso de levar a mão para estancar o vazamento, mas o movimento não aconteceu. Uma grande sombra interpôs-se entre o sol e sua visão baça. O homem pacientemente descansou a arma no coldre e, com um lenço vermelho, limpou o suor da testa. Ainda como que se certificando da conclusão do seu trabalho, com a ponta do sapato cutucou o tênis estirado, tingido de vermelho, sem vida. Na avenida, cinco andares abaixo, o cardeal seguia seu trajeto festivo recebendo o cortejo dos fiéis apinhados nas calçadas, portas e janelas com bandeirinhas, chapéus e rojões.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Por Um Pé de Feijão - (Antônio Torres)



Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.

Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?


E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.

No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.


Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.


E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:

- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?

E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.


À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.


Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.


- Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.

E disse mais:


- Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.


Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.

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Antônio Torres nasceu no dia 13 de setembro de 1940 num lugarejo chamado Junco (hoje município de Sátiro Dias), na Bahia. Aos 20 anos, em São Paulo, foi chefe de reportagem de esportes do jornal "Última Hora". Redator de publicidade desde 1963, trabalhou em algumas das principais agências do País, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sua estréia literária se deu com o romance "Um Cão Uivando nas Trevas", publicado em 1972. Em seguida, viria a publicar mais quatro romances: "Os Homens dos Pés Redondos" (1973), "Essa Terra" (1976), "Carta ao Bispo" (1979), "Adeus, Velho" (1981), "Um Táxi para Viena D´Áustria" (1991), "Balada da Infância Perdida" (1996), "O Cachorro e o Lobo" (1997) e "Meu Querido Canibal" (2000), entre outros. Pelo conjunto de sua obra, foi agraciado com oPrêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 2000.

Embora se considere essencialmente um romancista, Antônio Torres tem alguns contos, que publicou em livros e antologias, no Brasil e no Exterior.

Publicado originalmente em "Meninos, Eu Conto", Editora Record - Rio/São Paulo, 1999, o texto acima foi selecionado por Ítalo Moriconi e consta do livro "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 586.


segunda-feira, 6 de maio de 2013

Assombramento - (Afonso Arinos)



História do Sertão

À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a canela-d'ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com grande escadaria de pedra levando ao alpendre, não parecia desamparada. O viandante a avistava de longe, com a capela ao lado e a cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços abertos, em prece contrita para o céu. Naquele escampado onde não ria ao sol o verde escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava ainda mais o verde esmaiado dos campos.

E quem não fosse vaqueano naqueles sítios iria, sem dúvida, estacar diante da grande porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que a gente da fazenda era tão esquiva que nem ao menos aparecia à janela quando a cabeçada da madrinha da tropa, carrilhonando à frente dos lotes, guiava os cargueiros pelo caminho a fora.
Entestando com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios de aroeira e mourões cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da casa, convidando o viandante a abrigar-se nele. No chão havia ainda uma trempe de pedra com vestígios de fogo e, daqui e dacolá, no terreno acamado e liso, esponjadouros de animais vagabundos.

Muitas vezes os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho, trotavam para lá, esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns contra os outros as cobertas de couro cru; entravam pelo rancho adentro, apinhavam-se, giravam impacientes à espera da descarga até que os tocadores a pé, com as longas toalhas de crivo enfiadas no pescoço, falavam à mulada, obrigando-a a ganhar o caminho.

Por que seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as marchas e aguarem a tropa, não pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite, teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitência, cantassem com voz fanhosa a encomendação. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não estava por essas abusões e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada.
Montado em sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu macho crioulo por nome "Fidalgo" - dizia ele que tinha corrido todo este mundo, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver até onde chegavam os receios do povo.
Dito e feito.

Passando por aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada, saltava das selas ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas; e os tocadores, acudindo de cá e de lá, iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em desmontar, quedava-se de pé, recostado a um mourão de braúna, chapéu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro.
Os tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso. Contra o costume, não proferiram uma jura, uma exclamação; só, às vezes, uma palmada forte na anca de algum macho teimoso. No mais, o serviço ia-se fazendo e o Manuel Alves continuava quieto.

As sobrecargas e os arrochos, os buçais e a penca de ferraduras, espalhados aos montes; o surrão da ferramenta aberto e para fora o martelo, o puxavante e a bigorna; os embornais dependurados; as bruacas abertas e o trem de cozinha em cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho, denunciaram ao arneiro que a descarga fora feita com a ordem do costume, mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo na aventura.
Então, o arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais para examinar as pisaduras; mandou atalhar à sovela algumas cangalhas, assistiu à raspagem da mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acolá, fora da beira do capão onde costumam crescer as ervas venenosas.

Dos camaradas, o Venâncio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se a fundo os dois tropeiros, desde o tempo em que puseram o pé na estrada pela primeira vez, na era da fumaça, em trinta e três. Davam de língua às vezes, nos serões de pouso, um pedação de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados nos fardos ou estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada doída de uma cantilena saudosa.

Venâncio queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois viu logo que o Manuel Alves, ficando ai, tramava alguma das dele.
- O macho lionanco está meio sentido da viagem, só Manuel.
- Nem por isso. Aquele é couro n'água. Não é com duas distâncias desta que ele afrouxa.
- Pois olhe, não dou muito para ele urrar na subida do morro.
- Este? Não fale!
- Inda malhando nesses carrascos cheios de pedra, então é que ele se entrega de todo.
- Ora!
- Vossemecê bem sabe: por aqui não há boa pastaria; acresce mais que a tropa deve andar amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso não presta; a tropa amanhece desbarrigada que é um Deus nos acuda.
- Deixe de poetagens, Venâncio! Eu sei cá.
- Vossemecê pode saber, eu não duvido; mas na hora da coisa feia, quando a tropa pegar a arriar a carga pela estrada, é um vira-tem-mão e Venâncio p'r'aqui, Venâncio p'r'acolá.
Manuel deu um muxoxo. Em seguida levantou-se de um surrão onde estivera assentado durante a conversa e chegou à beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas trovas e, voltando-se de repente para o Venâncio, disse:
- Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala verdade uma vez.
- Hum, hum! Está aí! Eia, eia, eia!
~ Não temos eia nem peia. Puxe para fora minha rede.
- Já vou, patrão. Não precisa falar duas vezes.
E daí a pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada por longas franjas pendentes.
- Que é que vossemecê determina agora?
- Vá lá à tapera enquanto é dia e arme a rede na sala da frente. Enquanto isso, aqui também se vai cuidando do jantar...

O caldeirão preso à rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca no espeto e a camaradagem, rondando à beira do fogo lançava à vasilha olhares ávidos e cheios de angústias, na ansiosa expectativa do jantar. Um, de passagem atiçava o fogo, outro carregava o ancorote cheio de água fresca; qual corria a lavar os pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha.

Houve um momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha oficiosidade, arremangou aos parceiros dizendo-lhes:
- Arre! Tem tempo, gente! Parece que vocês nunca viram feijão. Cuidem de seu que fazer, se não querem sair daqui a poder de tição de fogo!
Os camaradas se afastaram, não querendo turrar com cozinheiro em momento assim melindroso.
Pouco depois chegava o Venâncio, ainda a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves.
Os tropeiros formavam roda, agachados, com os pratos acima dos joelhos e comiam valentemente.
- Então? perguntou Manuel Alves ao seu malungo.
- Nada, nada, nada! Aquilo por lá, nem sinal de gente!
- Uai! É estúrdio!
- E vossemecê pousa lá mesmo?
- Querendo Deus, sozinho, com a franqueira e a garrucha, que nunca me atraiçoaram.
- Sua alma, sua palma, meu patrão. Mas... é o diabo!
- Ora! Pelo buraco da fechadura não entra gente, estando bem fechadas as portas. O resto, se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de fazer por almoçá-la. Venâncio, defunto não levanta da cova. Você há de saber amanhã.
- Sua alma, sua palma, eu já disse, meu patrão; mas, olhe, eu já estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho escapado de algumas. Agora, o que eu nunca quis foi saber de negócio com assombração. Isso de coisa do outro mundo p'r'aqui mais p'r'ali - terminou o Venâncio, sublinhando a última frase com um gesto de quem se benze.
Manuel Alves riu-se e, sentando-se numa albarda estendida, catou uns gravetos do chão e começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando arabescos.... A camaradagem, reconfortada com o jantar abundante, tagarelava e ria, bulindo de vez em quando no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um rasgado na viola e outro - namorado, talvez, encostado ao esteio do rancho, olhava para longe, encarando a barra do céu, de um vermelho enfumaçado e, falando baixinho, co'a voz tremente, à sua amada distante...
II
Enoitara-se o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de cera, há pouco aceso e pregado ao pé direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer as vozes do sapo-cachorro que latia lá num brejo afastado, sobre o qual os vaga-lumes teciam uma trama de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada pastando, espalhada pelo campo. E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do animal, sonorizava aquela grave extensão erma.
As estrelas, em divina faceirice, furtavam o brilho às miradas dos tropeiros que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o céu.
Um dos tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pátria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor à independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam em coro, cantando o estribilho. A princípio timidamente, as vozes meio veladas deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se, animando-se, a solidão foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa música espontânea e simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira irmã gêmea das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tormentas. O idílio ou a luta, o romance ou a tragédia viveram no relevo extraordinário desses versos mutilados, dessa linguagem brutesca da tropeirada.
E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da noite nesse ermo consistório das almas penadas - outro, o Joaquim Pampa, lá das bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na campanha, quando corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes:
- Ché, povo! Tá chegando a hora!
O último estribilho:
Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas amolecessem para seus namorados fiéis:
Deixa estar o jacaré: 
A lagoa há de secar

O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes. E quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas palavras, ditas em tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo padecidas:
Rio Preto há de dar vau
Té pra cachorro passar!

- Tá chegando a hora!
- Hora de que, Joaquim?
- De aparecerem as almas perdidas. Ih! Vamos acender fogueiras em roda do rancho.
Nisto apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.
- Gente! O patrão já está na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas vocês sabem: ninguém gosta deste pouso mal-assombrado.
- Escute, tio Venâncio. A rapaziada deve também vigiar a tapera. Pois nós havemos de deixar o patrão sozinho?
- Que se há de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos e havia de ir só, porque assombração não aparece senão a uma pessoa só que mostre coragem.
- O povo diz que mais de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas no dia seguinte, os companheiros tinham que trazer defunto para o rancho porque, dos que dormem lá, não escapa nenhum.
- Qual, homem! Isso também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto. Eu cá não vou me fiando muito na boca do povo, por isso é que eu não gosto de pôr o sentido nessas coisas.
A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silêncio e a solidão da noite, realçando as cenas fantásticas das narrações de há pouco, filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminência das aparições.
E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros, de armas aperradas alguns e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e gabolas, diziam alto.
- Cá por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida - e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono.
Súbito, ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares como o último grito de um animal ferido de morte.
Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho.
Mas o Venâncio acudiu logo, dizendo:
- Até aí vou eu, gente! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou vaqueano velho e posso contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas ouve. Vocês têm razão: faz medo.
E os paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo capão adentro.
III
Manuel Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar, endireitou para a tapera, caminhando vagarosamente.
Antes de sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a também enfiada no correão da cintura. Não lhe esqueceu o rolo de cera nem um maço de palhas. O arneiro partira calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá chegando, penetrou no pátio pela grande porteira escancarada.
Era noite.
Tateando com o pé, reuniu um molho de gravetos secos e, servindo-se das palhas e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha arrancando paus de cercas velhas, apanhando pedaços de tábua de peças em ruína, e com isso, formou uma grande fogueira. Assim alumiado o pátio, o arneiro acendeu o rolo e começou a percorrer as estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.
- Quero ver se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma cama de bicho do mato.
E andava pesquisando, escarafunchando por aquelas dependências de casa nobre, ora desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado!
- Senhor! Por que seria? - inquiriu de si para si o cuiabano e parou à porta de uma senzala, olhando para o meio do pátio onde uma caveira alvadia de boi-espáceo, fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaçá-lo com a grande armação aberta.
Encaminhou para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria em duas escadas, de um lado e de outro, como dois lados de um triângulo, fechando no alpendre, seu vértice. No meio da parede e erguida sobre a sapata, uma cruz de madeira negra avultava; aos pés desta, cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do gado da porta, noutro tempo.
Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande fechadura sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado a dois passos no assoalho.
Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada e no canto da parede, embutido na alvenaria, um grande oratório com portas de almofada entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido à parede e chegou o rosto perto do oratório, procurando examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram ameaçadores.
- Que é lá isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a virgem Maria...
O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro e, cerrando a porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa pelo corredor comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mão espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa escura e de rodapés torneados, cercada de bancos esculpidos, estendia-se, vazia e negra.
O teto de estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha de telhado. Por aí corria uma goteira no tempo da chuva e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do fundo. Enfiando por um corredor que parecia conduzir à cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um quarto, cujo assoalho tinha no meio um montículo de escombros. Olhou para o céu e viu, abafando a luz apenas adivinhada das estrelas, um bando de nuvens escuras, roldando. Um outro quarto havia junto desse e o olhar do arneiro deteve-se, acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo erguido, sondando as prateleiras fixas na parede, onde uma coisa branca luzia. Era um caco velho de prato antigo. Manuel Alves sorriu para uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na porcelana alva.
Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela que olhava para fora, fez o arneiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casara-o abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta; o som continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre ao longe.
- É o vento, talvez, no sino da capela.
E penetrou num salão enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo, deixou no chão uma réstia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado aí. O arneiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede.
- Acaba aqui - murmurou.
Três grandes janelas no fundo estavam fechadas.
- Que haverá aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver...
Tentou abrir uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava, às vezes, reboando como uma vara de queixada em redemoinho no mato.

Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos. Resistindo elas, o arneiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um empurrão violento. A janela, num grito estardalhaçante, escancarou-se. Uma rajada rompeu por ela adentro, latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda houve um tatalar de portas, um ruído de reboco que cai das paredes altas e se esfarinha no chão.
A chama do rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só, babatando na treva.
Lembrando-se da binga sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra com jeito e bateu-lhe o fuzil; as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se logo. Então, o cuiabano deu uns passos para trás, apalpando até tocar a parede do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas procurando o entrevão das janelas. Aí, acocorou-se e tentou de novo tirar fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves soprou-a delicadamente, alentando-a com a principio, ela animou-se, quis alastrar-se, mas de repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o nas mãos e achou-o úmido; tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora em que fazia a fogueira no pátio e percorria as dependências deste.

Meteu a binga no bolso e disse:
- Espera, diaba, que tu hás de secar com o calor do corpo.
Nesse entremente a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e longínqua. Então o cuiabano pôs-se de gatinhas, atravessou a faca entre os dentes e marchou como um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote.
No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu proferir uma imprecação. O arneiro assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com o punho cerrado nos feixos da arma, chamando a pólvora aos ouvidos e esperou. O ruído cessara; só a zoada do sino continuava, intermitentemente.
Nada aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas. Mas, desta vez, a garrucha, aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos rítmicos, como a úngula de um quadrúpede manco. Ao passar junto ao quarto de teto esboroado, o cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo corredor a fora, apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou ouvindo um farfalhar distante, um sibilo como o da refega no buritizal.

Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casarão escuro e a ventania - alcatéia de lbos rafados - investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela. Saindo por aí, voltaram de novo os austros furentes, perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente, pelos salões vazios.
Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soído áspero de aço que ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas assustadas... Pelo espaço todo ressoou um psiu, psiu, psiu... e um bando enorme de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania.
Manuel foi impelido para a frente à corrimaça daqueles mensageiros do negrume e do assombramento. De músculos crispados num começo de reação selvagem contra a alucinação que o invadia, o arneiro alapardava-se, eriçando-se-lhe os cabelos. Depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia.

E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito que fazia o velho casarão falar ou gemer, ameaçá-lo ou repeti-lo, num conluio demoníaco com o vento, os morcegos e a treva.
Começou a sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo maligno. De vez em quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos e uns animálculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa. No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de um lado e de outro.
- Ah! vocês não me hão de levar assim-assim, não - exclamava o arrieiro para o invisível. - Pode que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro! Eu mostro!
E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante.

Súbito, uma luz indecisa, coada por alguma janela próxima, fê-lo vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando, sacudindo-se. O vento trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os lamentos do sino, mais acentuados agora.
Manuel estacou, com as fontes latejando, a goela constrita e a respiração curta. A boca semi-aberta deixou cair a faca: o fôlego, a modo de um sedenho, penetrou-lhe na garganta seca, sarjando-a e o arneiro roncou como um barrão acuado pela cachorrada. Correu a mão pelo assoalho e agarrou a faca; meteu-a de novo entre os dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro; uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe que sua arma fiel o traía. A escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O arneiro arrojou contra o monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de louco:
- Mandingueiros do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram medo dos dentes da minha garrucha! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações do demônio!
De um salto, arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com ímpeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho, onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente.

A queda assanhou-lhe a fúria e o arneiro, erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar. Deu-lhe um bote e estrincou nos dedos um como tecido grosso. Durante alguns momentos ficou no lugar, hirto, suando, rugindo.
Pouco a pouco foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que seus dedos arrochavam! era um pano, de sua rede, talvez, que o Venâncio armara na sala da frente.
Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam lá dentro Manuel, Manuel, Manuel - em frases tartamudeadas. O arneiro avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras que fugiam.

Foi dar na sala de jantar onde, pelo rasgão do telhado, pareciam descer umas formas longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.

O arneiro não pensava mais. A respiração se lhe tornara estertorosa; horríveis contrações musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava:
- Traiçoeiras! Eu queria carne para rasgar com este ferro! Eu queria osso para esmigalhar num murro!

As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida, iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos arrepiados ou dançando-lhe na frente. Era como uma chusma de meninos endemoniados a zombarem dele, puxando-o daqui, beliscando-o d'acolá, açulando-o como a um cão de rua.

O arneiro dava saltos de ugre, arremetendo contra o inimigo nessa luta fantástica: rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça esfaimada a que se escapa a presa. Houve um momento em que uma coréia demoníaca se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e aqueles círculos infernais o iam estringindo; as sombras giravam correndo, precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no chão ou saracoteando desenfreadamente.

Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e profundo e o arneiro deixou cair pesadamente a mão esquerda espalmada num portal, justamente quando um morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte pancada no rosto. Então, Manuel pulou novamente para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgão do telhado novas sombras desciam e algumas, quedas, pareciam dispostas a esperar o embate.
O arneiro rugiu:
- Eu mato! Eu mato! Mato! - e acometeu com de alucinado aqueles entes malditos. De um foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes, fragor medonho se fez ouvir; o assoalho podre cedeu barrote, roído de cupins, baqueou sobre uma coisa e desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá embaixo. Ao mesmo tempo, um som vibrante de metal, um tilintar como de moedas derramando-se pela fenda uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arneiro.
Manuel lá no fundo, ferido, ensangüentado, arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra como um ururau golpeado de morte. Em todo o corpo estendido com o ventre na terra, perpassava-lhe ainda uma crispação de luta; sua boca proferiu ainda: - "Eu mato ! Mato! Ma..." - e um silêncio trágico pesou sobre a tapera.
IV
O dia estava nasce-não-nasce e já os tropeiros tinham pegado na lida. Na meia luz crepitava a labareda embaixo do caldeirão cuja tampa, impelida pelos vapores que subiam, rufava nos beiços de ferro batido. Um cheiro de mato e de terra orvalhada espalhava-se com a viração da madrugada.
Venâncio, dentro do rancho, juntava, ao lado de cada cangalha, o couro, o arrocho e a sobrecarga. Joaquim Pampa fazendo cruzes na boca aos bocejos freqüentes, por impedir que o demônio lhe penetrasse no corpo, emparelhava os fardos, guiando-se pela cor dos topes cosidos aqueles. Os tocadores, pelo campo a fora, ecavam um para o outro, avisando o encontro de algum macho fujão. Outros, em rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa.
Pouco depois ouviu-se o tropel dos animais demandando o rancho. O cincerro tilintava alegremente, espantando os passarinhos que se levantavam das touceiras de arbustos, voando apressados. Os urus, nos capões, solfejavam à aurora que principiava a tingir o céu e manchar de púrpura e ouro o capinzal verde.
- Eh, gente! o orvalho 'stá cortando, êta! Que tempão tive briquitando co'aquele macho "pelintra". Diabo o leve! Aquilo é próprio um gato: não faz bulha no mato e não procura as trilhas, por não deixar rastro.
- E a "Andorinha"? Isso é que é mula desabotinada! Sopra de longe que nem um bicho do mato e desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto que eu soltei nela um matacão de pedra, de que ela havia de gostar pouco.
A rapaziada chegava à beira do rancho, tangendo a tropa.
- Que é da giribita? Um trago é bom para cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o guampo, Aleixo.
- Uma hora é frio, outra é calor, e vocês vão virando, cambada do diabo! - gritou o Venâncio.
- Largue da vida dos outros e vá cuidar da sua, tio Venâncio! Por força que havemos de querer esquentar o corpo: enquanto nós, nem bem o dia sonhava de nascer, já estávamos atolados no capinzal molhado, vossemecê tava aí na beira do fogo, feito um cachorro velho.
- Tá bom, tá bom, não quero muita conversa comigo não. Vão tratando de chegar os burros às estacas e de suspender as cangalhas. O tempo é pouco e o patrão chega de uma hora para a outra. Fica muito bonito se ele vem encontrar essa sinagoga aqui! E por falar nisso, é bom a gente ir lá. Deus é grande! Mas eu não pude fechar os olhos esta noite! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha à mente alguma que pudesse suceder a sô Manuel. Deus é grande!
Logo-logo o Venâncio chamou pelo Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais o José Paulista.
- Deixamos esses meninos cuidando do serviço e nós vamos lá.
Nesse instante, um molecote chegou com o café. A rapaziada cercou-o. O Venâncio e seus companheiros, depois de terem emborcado os cuités, partiram para a tapera.
Logo à saída, o velho tropeiro refletiu um pouco alto:
- É bom ficar um aqui tomando conta do serviço. Fica você, Aleixo.
Seguiram os três, calados, pelo campo a fora, na luz
Suave de antemanhã. Concentrados em conjeturas sobre a sorte do arneiro, cada qual queria mostrar-se mais sereno, andando lépido e de rosto tranqüilo; cada qual, escondia do outro a angústia do coração e a fealdade do prognóstico.
José Paulista entoou uma cantiga que acaba neste estribilho:
A barra do dia ai vem!
A barra do sol também,
Ai!
E lá foram, cantando todos três, por espantar as mágoas. Ao entrarem no grande pátio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel Alves tinha feito na véspera. Sem mais detença, foram-se barafustando pela escadaria do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo. Experimentaram-na primeiro. A porta, fortemente especada por dentro, rinchou e não cedeu.
Forcejaram os três e ela resistiu ainda. Então, José Paulista correu pela escada abaixo e trouxe ao ombro um cambão, no qual os três pegaram e, servindo-se dele como de um aríete, marraram com a porta. As ombreiras e a verga vibraram aos choques violentos cujo fragor se foi evolumando pelo casarão adentro em roncos profundos.
Em alguns instantes o espeque, escapulindo do lugar, foi arrojado no meio do solho. A caliça que caía encheu de pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos tropeiros - e a porta escancarou-se.
Na sala da frente deram com a rede toda estraçalhada.
- Mau, mau, mau! - exclamou Venâncio não podendo mais conter-se. Os outros tropeiros, de olhos esbugalhados, não ousavam proferir uma palavra. Apenas apalparam com cautela aqueles farrapos de pano, malsinados, com certeza, ao contato das almas do outro mundo.
Correram a casa toda juntos, arquejando, murmurando orações contra malefícios.
- Gente, onde estará sô Manuel? Vocês não me dirão pelo amor de Deus? - exclamou o Venâncio.
Joaquim Pampa e José Paulista calavam-se perdidos em conjeturas sinistras.
Na sala de jantar, mudos um frente do outro, pareciam ter um conciliábulo em que somente se lhes comunicassem os espíritos. Mas, de repente, creram ouvir, pelo buraco do assoalho, um gemido estertoroso. Curvaram-se todos; Venâncio debruçou-se, sondando o porão da casa.
A luz, mais diáfana, já alumiava o terreiro de dentro e entrava pelo porão: o tropeiro viu um vulto estendido.
- Nossa Senhora! Corre, gente, que sô Manuel está lá embaixo, estirado!
Precipitaram-se todos para a frente da casa, Venâncio adiante. Desceram as escadas e procuraram o portão que dava para o terreiro de dentro. Entraram por ele a fora e, embaixo das janelas da sala de jantar, um espetáculo estranho deparou-se-lhes:
O arneiro, ensangüentado, jazia no chão estirado; junto de seu corpo, de envolta com torrões desprendidos da abóbada de um forno desabado, um chuveiro de moedas de ouro luzia.
- Meu patrão! Sô Manuelzinho! Que foi isso? Olhe seus camaradas aqui. Meu Deus! Que mandinga foi esta? E a ourama que alumia diante dos nossos olhos?!
Os tropeiros acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam tremores convulsos. Seus dedos encarangados estrincavam ainda o cabo da faca, cuja lâmina se enterrara no chão; perto da nuca e presa pela gola da camisa, uma moeda de ouro se lhe grudara na pele.
- Sô Manuelzinho! Ai meu Deus! P'ra que caçar histórias do outro mundo! Isso é mesmo obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. Olha esse ouro, Joaquim! Deus me livre!
- Qual, tio Venâncio - disse por fim José Paulista. - Eu já sei a coisa. Já ouvi contar casos desses. Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que com a boca virada para o terreiro. Aí é que está. Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou porque o certo é que almas dos antigos donos desta fazenda não podiam sossegar enquanto não topassem um homem animoso para lhe darem o dinheiro, com a condição de cumprir, por intenção delas, alguma promessa, pagar alguma dívida, mandar dizer missas; foi isso, foi isso! E o patrão é homem mesmo! Na hora de ver a assombração, a gente precisa de atravessar a faca ou um ferro na boca, p'r'amor de não perder a fala. Não tem nada, Deus é grande!
E os tropeiros, certos de estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em tom solene. Mais de uma vez persignaram-se e, fazendo cruzes no ar, mandavam ê que quer que fosse - "para as ondas do mar" ou "para as profundas, onde não canta galo nem galinha".
Enquanto conversavam iam procurando levantar do chão o corpo do arneiro, que continuava a tremer. Às vezes batiam-se-lhe os queixos e um gemido entrecortado lhe arrebentava da garganta.
- Ah! Patrão, patrão! Vossemecê, homem tão duro, hoje tombado assim! Valha-nos Deus! São Bom Jesus do Cuiabá! Olha sô Manuel, tão devoto seu! - gemia o Venâncio.
O velho tropeiro, auxiliado por Joaquim Pampa procurava, com muito jeito, levantar do chão o corpo do arneiro sem magoá-lo. Conseguiram levantá-lo nos braços trançados em cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do rancho, Venâncio disse ao José Paulista:
- Eu não pego nessas moedas do capeta. Se você não tem medo, ajunta isso e traz.
Paulista encarou algum tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu tesouro. Era o velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara estava fincada no meio dos escombros. O tropeiro olhou para cima e viu, no alto, bem acima do forno o buraco do assoalho por onde caíra o Manuel.
- É alto deveras! Que tombo! - disse de si para si. - Que há de ser do patrão? Quem viu sombração fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual! Esse dinheiro há de ser de pouca serventia. Para mim, eu não quero: Deus me livre; então é que eu tava pegado com essas almas do outro mundo! Nem é bom pensar!
O forno estava levantado junto de um pilar de pedra sobre o qual uma viga de aroeira se erguia suportando a madre. De cá se via a fila dos barrotes estendendo-se para a direita até ao fundo escuro.
José Paulista começou a catar as moedas e encher os bolsos da calça; depois de cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor e, estendendo-o no chão o foi enchendo também; dobrou as pontas em cruz e amarrou-as fortemente. Escarafunchando os escombros do forno achou mais moedas e com estas encheu o chapéu. Depois partiu, seguindo os companheiros que já iam longe, conduzindo vagarosamente o arneiro.
As névoas volateantes fugiam impelidas pelas auras da manhã; sós, alguns capuchos pairavam, muito baixos, nas depressões do campo, ou adejavam nas cúpulas das árvores. As sombras dos dois homens que carregavam o ferido traçaram no chão uma figura estranha de monstro. José Paulista, estugando o passo, acompanhava com os olhos o grupo que o precedia de longe.
Houve um instante em que um pé-de-vento arrancou ao Venâncio o chapéu da cabeça. O velho tropeiro voltou-se vivamente; o grupo oscilou um pouco, concertando os braços do ferido; depois, pareceu a José Paulista que o Venâncio lhe fazia um aceno: "apanhasse-lhe o chapéu".
Aí chegando, José Paulista arreou no chão o ouro, pôs na cabeça o chapéu de Venâncio e, levantando de novo a carga, seguiu caminho a fora.
À beira do rancho, a tropa bufava escarvando a terra, abicando as orelhas, relinchando à espera do milho que não vinha. Alguns machos malcriados entravam pelo rancho adentro, de focinho estendido, cheirando os embornais.
Às vezes ouvia-se um grito: - Toma, diabo! - e um animal espirrava para o campo à tacada de um tropeiro.
Quando lá do rancho se avistou o grupo onde vinha o arneiro, correram todos. O cozinheiro, que vinha do olho-d'água com o odre às costas, atirou com ele ao chão e disparou também. Os animais já amarrados, espantando-se escoravam nos cabestros. Bem depressa a tropeirada cercou o grupo. Reuniram-se em mó, proferiram exclamações, benziam-se, mas logo alguém lhes impôs silêncio, porque voltaram todos, recolhidos, com os rostos consternados.
O Aleixo veio correndo na frente para armar a rede de tucum que ainda restava.
Foram chegando e José Paulista chegou por último. Tropeiros olharam com estranheza a carga que este conduzia; ninguém teve, porém, coragem de fazer uma pergunta: contentaram-se com interrogações mudas. Era o sobrenatural, ou era obra dos demônios. Para que saber mais? Não estava naquele estado o pobre do patrão?
O ferido foi colocado na rede havia pouco armada. Dos tropeiros chegou com uma bacia de salmoura; outro, correndo do campo com um molho de arnica, pisava a planta para extrair-lhe o suco. Venâncio, com pano embebido, banhava as feridas do arneiro cujo corpo vibrava, então, fortemente.
Os animais olhavam curiosamente para dentro do rancho, afilando as orelhas.
Então Venâncio, com a fisionomia decomposta, numa apoiadura de lágrimas, exclamou aos parceiros:
- Minha gente! Aqui, neste deserto, só Deus Nosso Senhor! É hora, meu povo! - E ajoelhando-se de costas para o sol que nascia, começou a entoar um - "Senhor Deus, ouvi a minha oração e chegue a vós o meu clamor!" - E trechos de salmos que aprendera em menino, quando lhe ensinaram a ajudar a missa, afloram-lhe à boca.
Os outros tropeiros foram-se ajoelhando todos atrás do velho parceiro que parecia transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes, desconcertadas, sem que ninguém compreendesse o que dizia. Entretanto, parecia haver uma ascensão de almas, um apelo fremente "in excelsis", na fusão dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era, vez, a própria voz do deserto mal ferido com as feridas seu irmão e companheiro, o fogoso cuiabano.

De feito, não pareciam mais homens que cantavam: era um só grito de angústia, um apelo de socorro, que do seio largo do deserto às alturas infinitas: - "Meu coração está ferido e seco como a erva... Fiz-me como a coruja, que se esconde nas solidões!... Atendei propicio à oração do desamparado e não desprezeis a sua súplica..."
E assim, em frases soltas, ditas por palavras não compreendidas, os homens errantes exalçaram sua prece com as vozes robustas de corredores dos escampados. Inclinados para a frente, com o rosto baixado para terra, as mãos batendo nos peitos fortes, não pareciam dirigir uma oração humilde de pobrezinhos ao manso e compassivo Jesus, senão erguer um hino de glorificação ao "Agios Ischiros", ao formidável "Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth".

Os raios do sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho, aclarando as costas dos tropeiros, esflorando-lhes as cabeças com fulgurações trêmulas. Parecia o próprio Deus formoso, o Deus forte das tribos e do deserto, aparecendo num fundo de apoteose e lançando uma mirada, do alto de um pórtico de ouro, lá muito longe, àqueles que, prostrados em terra, chamavam por Ele.
Os ventos matinais começaram a soprar mais fortemente, remexendo o arvoredo do capa-o, carregando feixes de folhas que se espalhavam do alto. Uma ema, abrindo as asas, galopava pelo campo... E os tropeiros, no meio de uma inundação de luz, entre o canto das aves despertadas e o resfolegar dos animais soltos que iam fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidão imensa.

Súbito, Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os olhos vagos e incendidos de delírio. A mão direita contraiu-se, os dedos crisparam-se como se apertassem o cabo de uma arma pronta a ser brandida na luta... e seus lábios murmuraram ainda, em ameaça suprema:

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Angústia - Poema