Buda observa, da janela central no primeiro andar do sobrado, o pequeno
túnel que a rua fronteiriça construiu ao acaso. A carreira de prédios altos que
nasce lá longe, defronte do rio, bebe da brisa aparentemente suave que lambe as
águas poluídas, brisa que cresce pela rua estreita, vai se transformando em
vento forte, e quando chega diante do sobrado, na pequena praça, virou uma
ventania, é sempre assim, quase todo dia, e um dia não era brisa no rio, era
vento forte mesmo, e foi correndo e aumentando através da rua e desembocou num
estrondo de janelas no sobrado. Uma espécie de tufão, pequeno – estamos no
Brasil –, mas assustando todo mundo, e a tia desceu as escadas correndo,
resvalou, caiu tentando se agarrar nas laterais, esfolando a mão, os joelhos, e
levantando em seguida e saindo para a calçada, o redemoinho erguendo folhas
amarelas das árvores quase secas, papéis sujos, pó, cabelo e saias.
Buda na janela se alarma. Pára, tia, sai daí, grita, e sua voz morre no
ruído da ventania. Ele grita mais uma vez, é inútil, ela não escuta, e se
escutasse ainda assim seria inútil, estrondam raios no céu plúmbeo, o chicote
nas árvores frágeis, a tia grita uma mistura de medo e volúpia, ai, ai,
aiiiiiiii, o vestido verde limão subindo até os seios, ela grita e não é de
pavor, se fosse pavor ela retrocederia, ela avança, pára no meio da rua, não há
perigo, não há tráfego, os automóveis desapareceram como por encanto, o vento,
o vento, o vento, a ruazinha armou essa cilada, Buda quase resvala na escada,
sai na calçada, aquela casa e aquela família cuspiram mais um desesperado, o
vento esbofeteia-o, lembra, menino, a dor das agulhadas da areia na beira da
praia, o vento marinho fustigando-lhe as pernas, mas agora está de calças,
grossas calças de brim, não há tempo de recordar, a tia no meio da rua grita
rindo, eu sou puta!, eu sou puta!, o rio fica longe, e está poluído, a ruazinha
deve ter uns três quilômetros, é só ruazinha porque é estreita, mas tem a
profundidade de uma avenida, de um rio, a porta do sobrado está aberta, o vento
sobe as escadas.
Buda não consegue agarrar a tia, ela luta, o vento, ela agora corre, o
sobrinho, ridículo, atrás dela. Ninguém ri de ver a cena. A mãe de Buda chora
por dentro. No rosto é apenas uma máscara de paciência. A irmã de Buda fica
quietinha no quarto, nem quer saber o que está acontecendo. O pai de Buda,
cunhado da tia, desce as escadas, vai fechar a porta. Uma hora Buda volta, com
a tia a tiracolo. Dessa ele não descuida. A mãe abriu uma tesoura em forma de
cruz sobre a mesa da cozinha. Mas nem se lembra de rezar. Ainda há uma janela
batendo, talvez no fundo do corredor. O quarto da tia.
Mais tarde, o que se anunciava caiu na terra: água, muita água. A chuva
começou chicoteando, socando forte as vidraças, erguendo contra a luz dos
faróis e dos postes uma poeira amarela, o chão fincado de estilhaços como
mínimas e geladas labaredas. Buda imaginou-se ali, mergulhado no ar tomado pelo
aguaceiro, debaixo do céu carrancudo.
A tia já tinha entrado, e ficou agitada andando de um lado para outro no
corredor, sem coragem de entrar no quarto, como se lá, na estreita, modesta
peça, estivesse o tufão sem a liberdade da rua, preso, vociferando sua força contra
as cortinas. Mas não havia mais nada disso, chovia apenas, a água acalmando a
fúria das primeiras pancadas, apressando porém seu ritmo, agora mais contínuo e
menos pesado.
(Conto do livro "A solidão do Diabo" - Bertrand Brasil, 2006)
Mini Biografia:
Paulo Bentancur, nascido em Livramento, RS, em 1957, é escritor,
crítico literário e oficineiro. Autor de diversos gêneros, do conjunto de sua
obra destacam-se "Instruções para iludir relógios (cronicontos, Artes e
Ofícios, 1994), "Bodas de osso" (poemas, Bertrand Brasil, 2005) e
"A solidão do Diabo" (contos, Bertrand Brasil, 2006). Ganhou 5 vezes
o importante prêmio Açorianos de Literatura.
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