quinta-feira, 27 de junho de 2013

Um pequeno tufão - (Paulo Bentancur)


Buda observa, da janela central no primeiro andar do sobrado, o pequeno túnel que a rua fronteiriça construiu ao acaso. A carreira de prédios altos que nasce lá longe, defronte do rio, bebe da brisa aparentemente suave que lambe as águas poluídas, brisa que cresce pela rua estreita, vai se transformando em vento forte, e quando chega diante do sobrado, na pequena praça, virou uma ventania, é sempre assim, quase todo dia, e um dia não era brisa no rio, era vento forte mesmo, e foi correndo e aumentando através da rua e desembocou num estrondo de janelas no sobrado. Uma espécie de tufão, pequeno – estamos no Brasil –, mas assustando todo mundo, e a tia desceu as escadas correndo, resvalou, caiu tentando se agarrar nas laterais, esfolando a mão, os joelhos, e levantando em seguida e saindo para a calçada, o redemoinho erguendo folhas amarelas das árvores quase secas, papéis sujos, pó, cabelo e saias.

Buda na janela se alarma. Pára, tia, sai daí, grita, e sua voz morre no ruído da ventania. Ele grita mais uma vez, é inútil, ela não escuta, e se escutasse ainda assim seria inútil, estrondam raios no céu plúmbeo, o chicote nas árvores frágeis, a tia grita uma mistura de medo e volúpia, ai, ai, aiiiiiiii, o vestido verde limão subindo até os seios, ela grita e não é de pavor, se fosse pavor ela retrocederia, ela avança, pára no meio da rua, não há perigo, não há tráfego, os automóveis desapareceram como por encanto, o vento, o vento, o vento, a ruazinha armou essa cilada, Buda quase resvala na escada, sai na calçada, aquela casa e aquela família cuspiram mais um desesperado, o vento esbofeteia-o, lembra, menino, a dor das agulhadas da areia na beira da praia, o vento marinho fustigando-lhe as pernas, mas agora está de calças, grossas calças de brim, não há tempo de recordar, a tia no meio da rua grita rindo, eu sou puta!, eu sou puta!, o rio fica longe, e está poluído, a ruazinha deve ter uns três quilômetros, é só ruazinha porque é estreita, mas tem a profundidade de uma avenida, de um rio, a porta do sobrado está aberta, o vento sobe as escadas.

Buda não consegue agarrar a tia, ela luta, o vento, ela agora corre, o sobrinho, ridículo, atrás dela. Ninguém ri de ver a cena. A mãe de Buda chora por dentro. No rosto é apenas uma máscara de paciência. A irmã de Buda fica quietinha no quarto, nem quer saber o que está acontecendo. O pai de Buda, cunhado da tia, desce as escadas, vai fechar a porta. Uma hora Buda volta, com a tia a tiracolo. Dessa ele não descuida. A mãe abriu uma tesoura em forma de cruz sobre a mesa da cozinha. Mas nem se lembra de rezar. Ainda há uma janela batendo, talvez no fundo do corredor. O quarto da tia.

Mais tarde, o que se anunciava caiu na terra: água, muita água. A chuva começou chicoteando, socando forte as vidraças, erguendo contra a luz dos faróis e dos postes uma poeira amarela, o chão fincado de estilhaços como mínimas e geladas labaredas. Buda imaginou-se ali, mergulhado no ar tomado pelo aguaceiro, debaixo do céu carrancudo.

A tia já tinha entrado, e ficou agitada andando de um lado para outro no corredor, sem coragem de entrar no quarto, como se lá, na estreita, modesta peça, estivesse o tufão sem a liberdade da rua, preso, vociferando sua força contra as cortinas. Mas não havia mais nada disso, chovia apenas, a água acalmando a fúria das primeiras pancadas, apressando porém seu ritmo, agora mais contínuo e menos pesado.



(Conto do livro "A solidão do Diabo" - Bertrand Brasil, 2006)

Mini Biografia:
Paulo Bentancur, nascido em Livramento, RS, em 1957, é escritor, crítico literário e oficineiro. Autor de diversos gêneros, do conjunto de sua obra destacam-se "Instruções para iludir relógios (cronicontos, Artes e Ofícios, 1994), "Bodas de osso" (poemas, Bertrand Brasil, 2005) e "A solidão do Diabo" (contos, Bertrand Brasil, 2006). Ganhou 5 vezes o importante prêmio Açorianos de Literatura.




sexta-feira, 21 de junho de 2013

Voluntário - (Inglês de Souza)




A velha tapuia Rosa já não podia cuidar da pequena lavoura que lhe deixara o marido. Vivia só com o filho, que passava os dias na pesca do pirarucu e do peixe-boi, vendido no porto de Alenquer e de que tiravam ambos o sustento, pois o cacau mal chegava para a roupa e para o tabaco. Apesar da pobreza rústica da casa, com as suas portas de japá e as paredes de sopapo, com o chão de terra batido, cavada pela ação do tempo, tinha o tapuia em alguma conta o asseio. (...) Rosa tecia redes, e os produtos da sua pequena indústria gozavam de boa fama nos arredores. A reputação do tapuio crescera com a feitura de uma maqueira de tucum ornamentada com a coroa brasileira, obra de ingênuo gosto, que lhe valera a admiração de toda a comarca, e provocara a inveja do célebre Ana Raimunda, de Óbidos, o qual chegara o formar uma fortunazinha com aquela especialidade, quando a indústria norte-americana reduzira a inatividade os teares rotineiros do Amazonas (...) Pedro era em 1865 um rapagão de dezenove anos, desempenado e forte. Tinha olhos pequenos, tais quais os do pai, com a diferença de que eram vivos, e de uma negrura de pasmar, A face era cor de cobre, as feições achatadas e grosseiras, de caboclo legítimo, mas com um cunho de bondade e de candura, que atraía o coração de quantos lhe punham a vista em cima. 

Demais, serviçal e alegre até ali. (...) E naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face à face toda a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante do agitação social, concentra-se a alma num apático recolhimento (...) O caboclo não ri, sorri apenas: e a sua natureza contemplativa revela-se no olhar fixo e vago em que se lêem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência ao mundo objetivo, e dele assoberbada. Os seus pensamentos não se manifestam em palavras por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão comunicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão. (...) Ninguém o podia dizer, mas é certo que até o princípio do ano de 1865, correram tranquilos os dias no cacoual do velho Rosa. Quem não sabe o efeito produzido a beira do rio pela notícia da declaração da guerra entre o Brasil e o Paraguai? Nas classes mais favorecidas da fortuna, nas cidades principalmente, o entusiasmo foi grande e duradouro. 

Mas entre o povo miúdo, o medo do recrutamento para voluntário da pátria foi tão intenso que muitos tapuios se meteram pelas matas e pelas cabeceiras dos rios e ali viveram como animais bravios sujeitos a todo a espécie de privações. (...) Descuidado e contente. Pedro labutava em paz, apesar das desgraças do tempo, ouvidas aos domingos, depois da missa, no adro da matriz. E quando lhe perguntavam se não receava o recrutamento", dizia com a candura habitual, que nunca fizera mal a ninguém, e era filho único de mulher viúva. Não contava, porém, com a ma vontade de Manuel de Andrade, mulato que era seu rival na pesca das tartarugas (...) Pelas 7 horas da manhã, a velha Rosa tratava do almoço e Pedro sentado á soleira do porta, preparava-se para caçar papagaios, limpando uma bela espingarda de dois canos, quando viu adiantar-se para o seu lado o capitão Fabrício, com os modos risonhos e corteses de um bom vizinho. Pedro ergueu-se surpreso e acanhado e pôs-se a balbuciar cumprimentos ao fazendeiro, cujo sorriso o enleava.

- Ora bom dia, seu Pedro. Então já sei que vai à caça? E está com uma bonita arma / Quer vendê-la? (...) — Eh, eh! seu Pedro, você esta um rapaz robusto e devia ser voluntário da Pátria. O governo precisa de gente forte lá no sul para dar cabo do demônio do López. Ora, é uma vergonha que você esteja a matar os pobrezinhos dos papagaios quando melhor quebraria a proa aos paraguaios, que são brutos também e inimigos dos cristãos.
Pedro balbuciava negativos e desculpas. Era filho único...não tinha jeito para a guerra... Quem tomaria conta da pobre velhinha? Mas o capitão pôs-lhe a mão no ombro dizendo em voz repassada de mel:

- Pois então tenha paciência. Se não quer ser voluntário, está recrutado.

(...) Pedro deu um pulo para trás, como se fora mordido por uma cobra. Recrutado, ele! A palavra fatídica soou-lhe aos ouvidos como anúncio de irreparável desgraça. O seu ar de candura e de bondade desapareceu por encanto, e o rapaz ficou todo transformado, como o pai, quando lutava braço a braço com alguma onça traiçoeira. Os olhos injetaram-se-lhe de sangue. Os lábios entreabriram-se para deixar sair a palavra rebelde, mas só descobriram os alvíssimos dentes, cerrados por um esforço violento. (...) O rapaz soltou um grito surdo, avançou contra Fabrício, arrancou-lhe a espingarda das mãos e brandiu-a sobre a cabeça do capitão, como se fora uma bengala. 

Quando ia descarregar a golpe, sentiu-se agarrado. Eram o sargento Moura e dois soldados, que, saindo dum matagal próximo, se haviam aproximado sem ser vistos. Ao ruído da luta, acudiu a velha Rosa, que soltando brados lamentosos, tentou arrancar o filho aos soldados, mas o capitão Fabrício segurou-a por um braço e atirou-a de encontro a um esteio da casa. (...) ferida e quase nua aos raios ardentíssimos do sol, a velha Rosa, a boa e generosa velhinha teria sucumbido miseravelmente, se por volta de meio dia não tivesse ali chegado o vizinho Inácio Mendes. O português vira do seu porto passar a canoa que levava o recruta e, desconfiando do que sucedera, viera, logo que pudera furtar algum tempo aos seus afazeres, informar-se do ocorrido. Pobre tia Rosa! Em que miserando estado a encontrara! (...) quando acordara, a claridade de um dia esplendido entrava pela transparência do japá. 

A rede da velha Rosa estava vazia. A mulher do Inácio Mendes correu ao porto e não achou a montaria de pesca de Pedro. Estava eu a esse tempo em Santarém, preparando uma viagem a Itaituba, a serviço da minha advocacia. Passeando uma tarde na praia do Tapajós, abeirou-se de mim uma cabocla velha em quem a custo reconheci a industriosa e boa velhinho do igarapé de Alenquer, em cujo hospitaleiro casa dormira algumas vezes de passagem pelo sítio (...) Contou-me a sua história, interrompendo-se a miúdo para limpar na manga do vestido as lagrimas que lhe corriam, e finalizou entregando-me um embrulho com dinheiro, duzentos e poucos mil réis, tudo quanto tinha, para que lhe livrasse o filho de jurar bandeira. Voltei imediatamente à cidade e, por intermédio de um amigo comum, obtive do delegado de polícia a licença de ver o recruta na cadeia, mas por uma só vez, e como exceção rara. 

O tapuio estava mergulhado num silêncio apático, de que nada o fazia sair (...) Empreguei a maior atividade nas diligências necessárias, porque sabia que era esperado a toda hora a vapor da Companhia do Amazonas, que devia levar o contingente de recrutas para a capital. Uma manha, vinha eu da casa do juiz com os melhores esperanças de êxito, pois se mostrava crente do direito que assistia ao meu cliente, e compadecido da sorte da velha que lhe não deixava a soleira da porta onde dormia. (...) Começou logo o embarque dos recrutas. Eram vinte rapazes tapuios os que a autoridade obrigava a representar a comédia do voluntariado. Vi-os sair da cadeia, entre duas filas de guardas nacionais, e encaminharem-se para o porto, seguidos dos parentes, dos amigos e de simples curiosos. Iam cabisbaixos, uns corridos de vergonha, como criminosos obrigados a percorrer as ruas da cidade nas garras da justiça; outros, resignados e imbecis como bois, caminhando para o matadouro; (...) Os curumins anunciavam os recrutas à medida que se aproximavam: - Os voluntários! Os voluntários!

Voluntários de pau e corda! disse cousticamente o vigário padre Pereira, fumando cigarros a porta de uma loja Apesar da tristeza do espetáculo que me compungia o coração, não pude deixar de alegrar-me por não ver entre os recrutas o filho da velha Rosa. Acompanhei a leva desde o quartel até a praia, vi-a emborcar, não me afastei enquanto o vapor não levantou ferros e procurou a barra do Tapajós, soltando um silvo rouco e prolongado. Adquiri então a certeza de que Pedro não embarcara (...) Comuniquei a nova à tia Rosa que fui encontrar sentado à porta do juiz de direito, onde passara a noite. Não partilhou da minha convicção. Na sua opinião, eu estava enfeitiçada. Pedro não estava no quartel e, portanto, seguira naquele mesmo vapor para a capital. Levei à conta de demência a incredulidade da velha e entrei na casa do juiz para informar-me do resultado do habeas-corpus. O magistrado disse-me com alguma tristeza:

- Escusado é tentar mais nada. O rapaz já embarcou. (...) Ainda ha bem pouco tempo, vagava pela cidade de Santarém uma pobre tapuia doida. A maior parte do dia passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no horizonte, contando com voz tremula e desenxabida a quadrinha popular:

Meu anel de diamantes caiu n’àgua e foi ao fundo: os peixinhos me disseram: viva Dom Pedro Segundo.


Fonte: www.passeiweb.com

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