quarta-feira, 17 de junho de 2015

A noite em que os hotéis estavam cheios - (Moacyr Scliar)

O casal chegou à cidade tarde da noite. Estavam cansados da viagem; ela, grávida, não se sentia bem. Foram procurar um lugar onde passar a noite. Hotel, hospedaria, qualquer coisa serviria, desde que não fosse muito caro.
Não seria fácil, como eles logo descobriram. No primeiro hotel o gerente, homem de maus modos, foi logo dizendo que não havia lugar. No segundo, o encarregado da portaria olhou com desconfiança o casal e resolveu pedir documentos. O homem disse que não tinha, na pressa da viagem esquecera os documentos.
— E como pretende o senhor conseguir um lugar num hotel, se não tem documentos? — disse o encarregado. — Eu nem sei se o senhor vai pagar a conta ou não!
O viajante não disse nada. Tomou a esposa pelo braço e seguiu adiante. No terceiro hotel também não havia vaga. No quarto — que era mais uma modesta hospedaria — havia, mas o dono desconfiou do casal e resolveu dizer que o estabelecimento estava lotado. Contudo, para não ficar mal, resolveu dar uma desculpa:
— O senhor vê, se o governo nos desse incentivos, como dão para os grandes hotéis, eu já teria feito uma reforma aqui. Poderia até receber delegações estrangeiras. Mas até hoje não consegui nada. Se eu conhecesse alguém influente… O senhor não conhece ninguém nas altas esferas?
O viajante hesitou, depois disse que sim, que talvez conhecesse alguém nas altas esferas.
— Pois então — disse o dono da hospedaria — fale para esse seu conhecido da minha hospedaria. Assim, da próxima vez que o senhor vier, talvez já possa lhe dar um quarto de primeira classe, com banho e tudo.
O viajante agradeceu, lamentando apenas que seu problema fosse mais urgente: precisava de um quarto para aquela noite. Foi adiante.
No hotel seguinte, quase tiveram êxito. O gerente estava esperando um casal de conhecidos artistas, que viajavam incógnitos. Quando os viajantes apareceram, pensou que fossem os hóspedes que aguardava e disse que sim, que o quarto já estava pronto. Ainda fez um elogio.
— O disfarce está muito bom. Que disfarce? Perguntou o viajante. Essas roupas velhas que vocês estão usando, disse o gerente. Isso não é disfarce, disse o homem, são as roupas que nós temos. O gerente aí percebeu o engano:
— Sinto muito — desculpou-se. — Eu pensei que tinha um quarto vago, mas parece que já foi ocupado.
O casal foi adiante. No hotel seguinte, também não havia vaga, e o gerente era metido a engraçado. Ali perto havia uma manjedoura, disse, por que não se hospedavam lá? Não seria muito confortável, mas em compensação não pagariam diária. Para surpresa dele, o viajante achou a idéia boa, e até agradeceu. Saíram.
Não demorou muito, apareceram os três Reis Magos, perguntando por um casal de forasteiros. E foi aí que o gerente começou a achar que talvez tivesse perdido os hóspedes mais importantes já chegados a Belém de Nazaré.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Lua cheia


Sorrateira, esgueira-se entre nuvens escuras
Enquadra-se em minha janela
Horas infinitas em silencio
Admiração mutua
Cismo ouvir suspiros:
Meus? Teus?
Dissolve-se o tempo
O encanto é rompido pelos os rugidos da manhã



sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

À deriva - (Horácio Quiroga)



O homem pisou algo brando e mole e, em seguida, sentiu a picada no pé. Saltou para frente, e ao se voltar com um palavrão, viu a jararacuçu que se recolhia sobre si mesma; preparava outro ataque.

O homem lançou uma rápida olhada a seu pé, de onde duas gotinhas de sangue engrossavam dificultosamente, e então sacou o facão da cintura. A víbora viu a ameaça, e fundiu mais a cabeça no centro mesmo de sua espiral; porém o facão caiu sobre ela, deslocando-lhe as vértebras.

O homem abaixou-se para olhar a mordida, limpou as gotinhas de sangue, e durante algum tempo contemplou. Uma dor aguda nascia dos dois pontinhos violeta, e começava a expandir-se por todo o pé. Apressadamente, amarrou o tornozelo com o lenço que trazia amarrado à cintura, e seguiu pela picada até seu rancho.


A dor no pé aumentava, e de repente, o homem sentiu dois ou três fulgurantes pontadas que como relâmpagos haviam-se irradiado da ferida, até a metade da panturrilha. Movia a perna com dificuldade; uma sede metálica na garganta, seguida de uma sede ardente, arrancou-lhe outro palavrão.

Chegou finalmente ao rancho, e abraçou a roda do moinho. O dois pontinhos violeta desapareciam agora na monstruosa inchação do pé inteiro. Parecia-lhe enfraquecida, e a ponto de ceder, de tão tensa. O homem quis chamar sua mulher, mas sua voz se quebrou num grunhido rouco de garganta ressecada. A sede o devorava.
— Dorotea! — conseguiu lançar um grito. — Me dá cachaça!
Sua mulher correu com um copo cheio, que o homem sorveu de três tragos. Porém não havia sentido gosto algum.
— Te pedi cachaça, não água! — rugiu de novo. — Quero cachaça!
— Mas é cachaça, Paulino! — protestou a mulher, espantada.  
— Não, me deste água! Quero cachaça, te digo!
A mulher correu outra vez, voltando com o garrafão. O homem bebeu um atrás do outro três copos, porém não sentiu nada na garganta.
— Bom, isto está feio... - murmurou então, olhando seu pé lívido e já com um brilho gangrenoso. Sobre a intensa atadura do lenço, a carne transbordava como uma pavorosa morcela.
As dores fulgurantes sucediam-se em relâmpagos contínuos, e chegavam agora à virilha. Além disso, a atroz sequidão da garganta que o esforço parecia esquentar mais, aumentava. Quando pretendia encorpar-se, um fulminante vômito manteve-o meio minuto com a testa apoiada na roda de madeira.
Mas o homem não queria morrer, e descendo à costa, subiu em sua canoa. Sentou-se na popa e começou a remar até o centro do Paraná. Ali, a correnteza do rio, que nas imediações do Iguaçu corre por seis milhas, o levaria antes de cinco horas a Tacurú-Pucú.

O homem, com fatigada energia, pode efetivamente chegar até o meio do rio; no entanto, ali suas mãos dormentes deixaram cair o remo na canoa, e por causa de um novo vômito — de sangue esta vez —, dirigiu um olhar ao sol que transpunha a montanha.
A perna inteira, até metade da coxa, era já um pedaço disforme e duríssimo que rompia a roupa. O homem cortou a ligadura e abriu a calça com a faca: a parte inferior desbordou inchada, com grandes manchas lívidas e terrivelmente dolorosas. O homem pensou que não poderia jamais chegar sozinho a Tacurú-Pucú, e decidiu pedir ajuda a seu compadre Alves, embora fizesse muito tempo estivessem intrigados um com o outro.
A correnteza do rio precipitava-se agora para a costa brasileira, e o homem pode facilmente atracar. Arrastou-se pela picada costa acima, porém a vinte metros, exausto, ficou estendido de costas.

— Alves! — gritou com a força que pode; e prestou atenção em vão.
— Compadre Alves! Não me negue este favor! — clamou de novo, levantando a cabeça do solo.

No silêncio da selva, não se ouviu um só rumor. O homem teve ainda forças para chegar até sua canoa, e a correnteza, apoderando-se dela de novo, levou-a à deriva.
O Paraná corre ali no fundo de uma imensa depressão, cujas paredes, com altura para lá de cem metros, estreitam funebremente o rio. Desde as margens cercadas de negros blocos de basalto eleva-se o bosque, negro também. Adiante, às costas, sempre a eterna muralha lúgubre, em cujo fundo o rio afunilado se precipita em incessantes erupções de água lodosa. A paisagem é agressiva, contudo, sua beleza sombria e calma cobra uma majestade única.

O sol havia já havia caído, quando o homem, estendido no fundo da canoa, teve um violento calafrio. E, de repente, com assombro, pôs na vertical pesadamente a cabeça: sentia-se melhor. Somente a perna lhe doía, a sede apagava-se, e seu peito, livre já, abria-se em lenta inspiração.

O veneno começar a ir-se, não havia dúvida. Achava-se quase bem, e embora não tivesse forças para mover a mão, contava com a vinda do orvalho para repor-se todo. Calculou que antes de três horas estaria em Tacurú-Pucú.

O bem-estar progredia e, com ele, uma letargia cheia de recordações. Não sentia mais nada na perna nem no ventre. Viveria ainda seu compadre Gaona em Tacurú-Pucú? Por acaso veria também seu ex-patrão, mister Dougald, e o encarregado de obras?
Chegaria repentinamente? O céu, a poente, abria-se agora num resplendor de sangue, e o rio se havia avermelhado também. Da costa paraguaia, já em trevas, a montanha deixava cair sobre o rio sua frescura crepuscular, em penetrantes eflúvios de flores de laranjeiras e mel silvestre. Um casal de araras cruzou o céu muito alto e em silêncio até o Paraguai.
Lá embaixo, sobre o rio de ouro, a canoa derivava velozmente, girando de tempos em tempos sobre si mesma, ante a erupção de um remoinho. O homem que ia nela se sentia cada vez melhor, e pensava no tempo justo em que havia passado sem ver seu ex-patrão Dougald. Três anos? Talvez, não tanto. Dois anos e nove meses? Talvez. Oito meses e meio? Isso sim, certamente.
De repente, sentiu que estava gelado até o peito. Que seria? E a respiração...
Ao madeireiro de mister Dougald, Lorenzo Cubilla, havia conhecido em Puerto. Esperança em Sexta-feira Santa...Sexta-feira? Sim, ou quinta-feira...


O homem estendeu lentamente os dedos da mão.
— Uma quinta-feira...

E parou de respirar.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O menino que escrevia versos - (Mia Couto)




De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?

(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
 
— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:

— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas  confissões de amor.

Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

— São meus versos, sim.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.

Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:

— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.

Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:

— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.

A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.

— Não continuas a escrever?

— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida
 — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.

O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo...


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Diga a eles que não me matem! - (Juan Rulfo)





- Diga a eles que não me matem, Justino! Anda, vai dizer isso. Que por caridade. Diga a eles assim. Diga que o façam por caridade.
- Não posso. Há ali um sargento que nem quer ouvir falar de ti.
- Faz com que te ouça. Usa as tuas manhas e diga que para sustos já chega. Diga que o faça pela caridade de Deus.
- Não se trata de sustos. Parece que te vão matar de verdade. Eu já não quero voltar lá.
- Vai outra vez. Só mais uma vez, a ver o que consegues.
- Não. Não tenho vontade de ir. É evidente que eu sou teu filho. E, se vou muitas vezes ter com eles, acabarão por saber quem sou e pode dar-lhes para me fuzilarem a mim também. É melhor deixar as coisas tal como estão.
- Anda, Justino. Diz-lhes que tenham só um bocadinho de lástima de mim. Diga só isso.
Justino apertou os dentes e moveu a cabeça, dizendo:
- Não.
E continuou a abanar a cabeça durante muito tempo
- Diga ao sargento que te deixe ver o coronel. E conta-lhe quão velho estou. O pouco que valho. Que lucro terá por matar-me? Nenhum lucro. Ao fim e ao cabo ele deve ter uma alma. Diga que o faça pela bendita salvação da sua alma.
Justino levantou-se do monte de pedras em que estava sentado e caminhou até à porta do curral. Depois voltou-se para dizer:
- Vou, então. Mas se por acaso me fuzilam a mim também, quem cuidará da minha mulher e dos filhos?

- A Providência, Justino. Ela se encarregará deles. Preocupa-te em ir lá e ver que coisas fazes por mim. Isso é que urge.
Tinham-no trazido de madrugada. E agora já ia avançada a manhã e ele continuava ainda ali, amarrado a uma estaca, esperando. Não conseguia estar quieto. Tinha feito a tentativa de dormir um pouco para se apaziguar, mas o sono tinha abalado. Também tinha abalado a fome. Não tinha vontade de nada. Só de viver. Agora que sabia bastante bem que o iam matar, tinha-lhe entrado uma vontade tão grande de viver como só a pode sentir um recém-ressuscitado.
Quem lhe haveria de dizer que havia de voltar àquele assunto tão velho, tão rançoso, tão enterrado como pensava que estava. Aquele assunto de quando teve que matar dom Lupe. Não foi sem mais nem menos, como lhe quiseram fazer crer os de Alima, mas sim porque teve as suas razões. Ele lembrava-se: Dom Lupe Terreros, o dono da Puerta de Piedra, ainda por cima seu compadre. Ao qual ele, Juvêncio Nava, teve que matar por isso mesmo; por ser o dono da Puerta de Piedra e porque, sendo também seu compadre, lhe negou o pasto para os seus animais.
Primeiro aguentou-se por mero compromisso. Mas depois, quando da seca, em que viu como lhe morriam um atrás do outro os seus animais fustigados pela fome e que o seu compadre dom Lupe continuava a negar-lhe a erva dos seus pastos, foi então que se pôs a partir a cerca e a empurrar a massa de animais magros até ao capim para que se fartassem de comer. E o dom Lupe não tinha gostado disso, tanto que mandou tapar outra vez a cerca para que ele, Juvêncio Nava, lhe voltasse a abrir outra vez o buraco. Assim, de dia tapava-se o buraco e de noite voltava a abrir-se, enquanto o gado estava ali, sempre colado à cerca, sempre esperando; aquele seu gado que antes só vivia cheirando o pasto sem o poder provar.
E ele e dom Lupe discutiam e voltavam a discutir sem chegarem a acordo.
Até que uma vez dom Lupe lhe disse:
- Olha, Juvêncio, outro animal mais que tu metes no pasto e eu mato.

E ele respondeu:
- Olhe, dom Lupe, eu não tenho a culpa que os animais procurem o seu conforto. Eles são inocentes. Você verá as consequências, se os matar.
E matou-me um novilho.
Isto aconteceu há trinta e cinco anos, em Março, porque em Abril eu já andava no monte, fugindo da precatória. De nada me serviram as dez vacas que dei ao juiz, nem a penhora da minha casa para lhe pagar a minha saída da prisão. Ainda depois se pagaram com o que restava, só para não me perseguirem, embora de toda a maneira me tenham perseguido. Por isso vim viver com o meu filho neste outro terrenozinho que eu tinha e que se chama Paio de Venado. E o meu filho cresceu e casou-se com a minha nora Ignacia e já teve oito filhos. Assim como assim a coisa já vai para velha, e por isso deveria estar esquecida. Mas, pelos vistos, não está.
Eu então calculei que com uns cem pesos ficava tudo arrumado. O defunto dom Lupe era sozinho, vivia só com a mulher e os dois rapazinhos ainda de gatas. E a viúva depressa morreu também, dizem que de tristeza. E aos rapazinhos levaram-nos para longe, para casa de uns parentes. Assim que, pela parte deles, não havia que ter medo.
Mas os demais insistiam em que eu andava com a precatórias em julgamento para me assustarem e continuarem a roubar-me. Cada vez que alguém chegava à aldeia avisavam-me:
- Andam por aí uns forasteiros, Juvêncio.
E eu fugia para o monte, emaranhando-me entre os medronheiros e passando os dias a comer só beldroegas. Às vezes tinha que sair à meia-noite, como se me estivessem perseguindo os cães. Isso durou a vida toda. Não foi um ano nem dois. Foi a vida toda.
E agora tinham ido à sua procura, quando já não esperava ninguém, confiado no esquecimento em que as pessoas o tinham; acreditando que pelo menos os seus últimos dias os passaria tranquilo. «Pelo menos isto» pensou «conseguirei com estar velho. Deixar-me-ão em paz.»
Tinha-se entregado a esta esperança por inteiro. Era por isso que lhe custava trabalho imaginar que ia morrer assim de repente, nesta altura da sua vida, depois de tanto lutar para se livrar da morte; de ter passado o seu melhor tempo andando de um lado para o outro arrastado pelos sobressaltos e quando o seu corpo tinha acabado por ser um simples couro duro, curtido pelos maus dias em que teve que andar a esconder-se de todos.
Não tinha ele, por acaso, deixado até que a mulher lhe abalasse? Naquele dia que amanheceu com a novidade de que a mulher se tinha ido embora, nem sequer lhe passou pela cabeça a intenção de sair a procurá-la. Deixou que abalasse sem perguntar nem com quem nem para onde, para não ter de descer à aldeia. Deixou que se fosse como se lhe tinha ido tudo o resto, sem mexer uma palha. A única coisa que lhe restava para cuidar era a vida, e esta conservá-la-ia fosse como fosse. Não podia deixar que o matassem. Não podia. Muito menos agora. Mas para isso o tinham trazido de lá, de Paio de Venado. Não precisaram de amarrá-lo para que os seguisse. Ele andou sozinho, unicamente manietado pelo medo. Eles deram-se conta de que ele não podia correr com aquele corpo velho, com aquelas pernas fracas como cordas secas, inteiriçadas, com o medo de morrer. Porque ia para isso. Para morrer, disseram.
Soube desde então. Começou a sentir essa comichão no estômago, que lhe chegava de repente sempre que via a morte de perto e que lhe puxava a ânsia pelos olhos, e que lhe inchava a boca com aqueles goles de água azeda que tinha que engolir sem querer. E essa coisa que lhe fazia os pés pesados enquanto a cabeça lhe amolecia e o coração lhe batia com todas as suas forças nas costelas. Não, não se podia acostumar à ideia que o matassem.
Tinha que haver alguma esperança. Em algum lugar poderia ainda restar alguma esperança. Talvez eles se tivessem enganado. Talvez procurassem outro Juvêncio Nava e não o Juvêncio Nava que ele era.
Caminhou entre aqueles homens em silêncio, de braços caídos. A madrugada era escura, sem estrelas. O vento soprava devagar, levava consigo a terra seca e trazia mais, cheio desse cheiro como de urina que tem o pó dos caminhos.
Os seus olhos, que com os anos se tinham encarquilhado, vinham vendo a terra, aqui, debaixo dos seus pés, apesar da escuridão. Ali na terra estava toda a sua vida. Sessenta anos a viver dela, contendo-a entre as suas mãos, depois de a ter provado como se prova o sabor da carne. Veio durante longo tempo esmiuçando-a com os olhos, saboreando cada pedaço como se fosse o último, quase sabendo que seria o último.
Depois, como querendo dizer alguma coisa, olhava os homens que iam junto dele. Ia dizer-lhes que o soltassem, que o deixassem abalar: «Eu não fiz mal a ninguém, rapazes», ia dizer-lhes, mas ficava calado. «Mais adiante digo-lhes», pensava. E só os olhava. Podia até imaginar que eram seus amigos; mas não o queria fazer. Não eram. Não sabia quem eram. Via-os a seu lado inclinando-se e agachando-se de vez em quando para ver por onde seguia o caminho.
Tinha-os visto pela primeira vez ao empardecer da tarde, nessa hora desbotada em que tudo parece chamuscado. Tinham atravessado os sulcos pisando o milho tenro. E ele tinha descido para isso: para lhes dizer que ali estava a começar a crescer o milho. Mas eles não se detiveram.
Tinha-os visto bastante tempo. Sempre teve a sorte de ver tudo com bastante tempo. Podia ter-se escondido, caminhar umas quantas horas pelo cerro enquanto eles não abalavam e depois voltar a descer. Ao fim e ao cabo, o milho não cresceria de maneira nenhuma. Já era tempo de terem chegado as águas e as águas não apareciam e o milho começava a murchar. Não tardaria em estar completamente seco.
Assim nem merecia a pena ter descido; ter-se metido entre aqueles homens como num buraco, para já não voltar a sair.
E agora continuava junto deles, aguentando a vontade de lhes dizer que o soltassem. Não lhes via a cara; só via os vultos que se juntavam ou se separavam dele. De tal maneira que, quando se pôs a falar, não soube se o tinham ouvido. Disse:
- Eu nunca fiz mal a ninguém - disse isso. Mas nada mudou. Nenhum dos vultos pareceu aperceber-se. As caras não se viraram para o ver. Continuaram na mesma, como se tivessem vindo a dormir.
Então pensou que não tinha mais nada para dizer, que teria de procurar a esperança em qualquer outro lugar. Deixou cair outra vez os braços e entrou nas primeiras casas da aldeia no meio daqueles quatro homens escurecidos pelo negro calor da noite.
- Meu coronel, aqui está o homem.
Tinham parado à frente da ombreira da porta. Ele, com o seu chapéu na mão, por respeito, esperando ver sair alguém. Mas só saiu a voz:
- Qual homem? - perguntaram.
- O de Paio de Venado, meu coronel. O que o senhor nos mandou buscar.
- Pergunta-lhe se alguma vez viveu em Alima - voltou a dizer a voz de lá de dentro.
- Eh, tu! O coronel pergunta se habitaste em Alima? repetiu o sargento que estava à frente dele. .
- Sim. Diga ao coronel que sou mesmo de lá. E que lá vivi até há pouco tempo.
- Pergunta-lhe se conheceu Guadalupe Terreros.
- Está a perguntar se conheceste Guadalupe Terreros.
- Ao dom Lupe? Sim. Diga que sim que o conheci. Já morreu.
Então a voz lá de dentro mudou de tom:
- Já sei que morreu - disse. E continuou a falar como se conversasse com alguém, do outro lado da parede de carriços:
- Guadalupe Terreros era meu pai. Quando cresci e o procurei disseram-me que estava morto. É um bocado difícil crescer sabendo que a coisa a que podemos agarrar-nos para criar raízes está morta. Conosco, aconteceu isso. Depois soube que o tinham matado à machadada, cravando-lhe depois uma vara de ferrão no estômago. Contaram-me que ele sobreviveu mais de dois dias perdido e que, quando o encontraram, atirado num arroio, ainda estava agonizando e pedindo que se encarregassem de lhe cuidar da família. Isto, com o tempo, parece que se esquece. Uma pessoa tenta esquecer. Aquilo que não se esquece é chegar a saber que quem fez aquilo ainda está vivo, alimentando a sua alma podre com a ilusão da vida eterna. Não poderia perdoar-lhe, embora não o conheça; mas o facto de se ter posto no lugar onde eu sei que está, dá-me ânimo para acabar com ele. Não lhe posso perdoar que continue a viver. Não devia ter nascido nunca.
Daqui, de cá de fora, ouviu-se claramente tudo o que disse. Depois ordenou:
- Levem-no e amarrem-no um bocado, para que padeça, e depois fuzilem-no!
- Olha para mim, coronel! - pediu ele. - Já não valho nada. Não tardarei em morrer sozinho, derreado de velho. Não me mates!
- Levem-no! - voltou a dizer a voz lá de dentro.
- ... Já paguei, coronel. Paguei muitas vezes. Tiraram-me tudo. Castigaram-me de muitas formas. Passei coisa de quarenta anos escondido como um pestilento, sempre com o palpite de que a qualquer momento me matariam. Não mereço morrer assim, coronel. Deixa que, pelo menos, o Senhor me perdoe. Não me mates! Diga que não me matem!
Estava ali, como se lhe tivessem batido, sacudindo o seu chapéu contra a terra. Gritando.
De seguida a voz lá de dentro disse:
- Amarrem-no e dêem-lhe alguma coisa para beber até que se embebede para não lhe doerem os tiros.
Agora, por fim, tinha-se apaziguado. Estava ali encostado ao pé da estaca. Tinha vindo o seu filho Justino e o seu filho Justino tinha abalado e tinha voltado e agora vinha outra vez.
Pô-lo em cima do burro. Amarrou-o bem amarrado aos arreios para que não caísse pelo caminho. Meteu-lhe a cabeça dentro de um saco para que não desse má impressão. E depois deu um puxão na crina do burro e abalaram, lançados, depressa, para chegar a Paio de Venado ainda com tempo para organizar o velório do defunto.

- A tua nora e os teus netos vão ter saudades tuas - ia dizendo. - Olhar-te-ão na cara e pensarão que não és tu. Vai parecer-lhes que foi o coiote que te comeu, quando te virem com essa cara tão cheia de buracos por causa de tanto tiro de misericórdia que te deram.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O escritor José Mattos lança livro "CROA CERRADA" pela Editora Protexto

O escritor José Mattos lança pela Editora Protexto...

CROA CERRADA


Vem à luz um inusitado volume de contos – dezenove histórias – a revelar que os recursos da grande literatura são inesgotáveis. É o que podemos verificar em CROA CERRADA, de José Mattos. Entre o realismo mais brutal e um fantástico que nos lembra o clássico argentino Horácio Quiroga (1878-1937), transita o autor e suas narrativas. Por vezes um mundo naturalista, praticamente uma selva lá e cá habitada, por vezes alusões a sortilégios de famílias amaldiçoadas, seja por algo do mundo natural ou pelo que parece alucinação mas não é.

Romancista, contista e poeta, Mattos surpreende também com sua linguagem, entre a prosa e a poesia, carregada de imagens evocativas, entre o primitivo e o mágico. Nos sentimos penetrando em outro mundo, no qual cenário e palavra nos surpreendem e emocionam.

Bastaria esse estilo expressivo com que os contos se apresentam para nos levar ao fascínio. Mas, contista legítimo, o autor não perde de vista que apesar da exuberância de sua linguagem, ele tem uma trama a conduzir e levá-la até um desfecho diante de um leitor provavelmente estupefato. É o que se prevê nessas quase duas dezenas de narrativas, o que elas trazem à nova, uma espécie de mundo reinaugurado.

Um livro, em síntese, onde contos de um mundo bruto coabitam com um mundo onírico, prestes a nos escapar do sonho e amanhecer em torno de nós, assim que a manhã nos abra os olhos para um real tão selvagem quanto misterioso.

José Mattos é natural de Cornélio Procópio – PR, nascido em 5 de maio de 1964. Funcionário público municipal desde 1993. Tem licenciatura plena em Letras. Foi um dos pioneiros radialistas da emissora Vale do Pardo, e desde cedo mantém um caso de paixão com a literatura, que até hoje faz parte do seu cotidiano, como uma tentativa de ver o avesso do mundo. Inédito, tem ainda o romance A queimada, finalista do Prêmio SESC/2010. Atualmente trabalha em novo romance com o título provisório de O inferno fica perto, entre outros projetos. Reside em Santa Rita do Pardo – MS, desde que era Xavantina.


Ficha Técnica

Gênero:
Contos
Autor:
Titulo:
Croa Cerrada
ISBN:
9788578285302
Assunto:
Contos
Espec. Gráfica:
Brochura 14cm x 21cm. Interior em papel offset 90g. Capa a cores em cartão especial 250g com laminação fosca. Selo de responsabilidade ambiental por utilizar somente papéis provenientes de reflorestamento.
Nº Páginas:
104
Peso:
175 gramas
Largura:
14,0 cm   Altura: 21,0 cm
Preço:
R$ 25,00(À Vista)
Observações
Ano Publicação: 2014
Editora Protexto:


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