Aqui tudo vai de mal a pior. Toda tarde uma grande nuvem surgia no
horizonte arrastando-se em nosso rumo. Olhávamos como encantados para ela
esperando o primeiro pingo. Nada. Ficávamos até tarde esperando o milagre do
primeiro pingo. A noite avançava, a nuvem esvaía-se ficando a angústia
ressecando a garganta. Ao apertar-lhe as tetas, em resposta, as pobres vacas
soltavam um mugido de dor. No dia anterior a última tombou sem vida, em puro
couro, osso e um fiapo de som rouco no lugar do mugido.
Ficou ali mesmo onde caíra. Não havia ânimo para arrastá-la para algum
lugar. Nem tinha o que feder. Puro couro e osso. Nem os carcarás ousaram deixar
o galho seco para apreciar a carniça. Ficaram pendurados aos galhos como frutas
malditas de um tronco sem vida. A bica d’água parou de escorrer. Agora era
preciso caminhar até o leito do córrego, pisar com cuidado para não espantar os
ciscos, e encher a vasilha maior com uma menor.
Ontem mesmo, meu pai voltou do campo ainda mais desolado. Fiquei sabendo
mais tarde, pela minha mãe – o potro que eu havia ganhado no aniversário
passado, amanhecera morto no brejo. Certamente à procura de beber.
Quando me levantei, a manhã estava límpida. Nenhum risco de nuvem no
infinito azul. Ao caminhar, os pés queimavam nas labaredas invisíveis. Dava
dois ou três saltos antes de me acomodar sob alguma moita de arbustos
ressequidos. Andei sem um propósito sequer. O calor insuportável enervava
todos. Eu me mexia saltitante em volta da casa. Minha mãe resmungava num canto.
O calor insuportável, os resmungos, as aves de rapina quietas, o silêncio
do mau pai, a nuvem que vinha todas as tardes arrastando a barrigona sobre os
galhos secos. Ainda para completar, começaram os espirrar sem parar. O motivo
devia ser uma onda de fumaça que se aproximava rastejante, afagando tudo que
encontrava pela frente. Ainda ouvi meu pai gritar do limiar da porta, “os
diabos abriram a porta do inferno! Não há outra explicação”. Depois, senti que
a terra se remexia sob meus pés, fazia ondas gigantes e em seguida me
precipitou num abismo vertiginoso.
Eu insistia em andar aos tropeços, agachado sobre os calcanhares, deitando
de barriga no chão. A terra dava voltas e mais voltas. Eu, determinado,
enterrava as unhas no chão, sangrava, doía. Mas eu não podia me soltar. Com
muito custo, alcancei a porta, olhei para os lados e não havia ninguém, embora
eu continuasse a ouvir os resmungos de minha mãe no meio do redemoinho de
silêncio. Meus dedos sangravam. Arrastei-me com os cotovelos até meu quarto.
Subi com dificuldade na cama e fiquei quieto como bicho à espreita. As roupas
estavam molhadas, e o corpo tremia de frio.
O rumor agora era o murmurar do vento contra os galhos das árvores na
noite. Aos poucos o escuro foi se agitando. Ventos torciam os ingazeiros
rufando trovões, estremecendo a terra. Deitado, observei através das frinchas
da parede riscos dos raios no céu negro. A lamparina ao pé da cama não parava
acesa por conta da ventania a invadir o quarto; e a luz era consumida pela
escuridão.
No piquete, o tropel misturava-se ao retumbar das descargas dos trovões.
Os animais incitavam em estridente disparada e esticavam até bater o peito no
outro extremo do cercado. Viravam e reiniciavam a corrida, relinchando. Em meio
a essa balbúrdia, finíssimos assovios rompiam a tempestade e feriam-me, como
finas agulhas, os ouvidos – provocando estremecimento no corpo inteiro.
– Liga não, é o saci montando os
cavalos. Ele aproveita as noites escuras para cavalgar e fazer tranças nas
crinas dos animais. Quase se matam de correr, os pobres bichos. Dizem que ele é
sozinho e assovia, procurando um companheiro. Por isso não é bom assoviar à
noite; porque daí ele vem falar com você, querer amizade – diziam os mais velhos, jogando
conversa fora, sentados à sombra copada do jamelão. Essa ideia me deixava
apequenado.
Enrolava-me o mais que podia. Mas mesmo assim ainda era possível ver os
relâmpagos através da espessa malha do cobertor. Os vultos se contorcendo do
lado de fora me deixavam com dificuldades de respirar. Minha imaginação mirava
monstros de todas as espécies, mesmo os olhos fechados. Meu coração agitava-se
e as mãos trêmulas se esfregavam suadas.
O quarto vagava através da tempestade. Não saberia distinguir a realidade
nesse momento. O que sei é que um homem, com um meio sorriso, aproximou-se de
mim. Caminhando lentamente, estendeu-me os braços:
– Você assoviou para mim?
Meus sentidos me faltaram, o grito morreu na garganta. Tentei correr,
percebi que tropeçara em algo estendido no chão. Caí de rosto na terra fria e,
no desespero, olhei para o lado. Dei com as vistas nos pés da criatura. Estavam
virados para trás.
Quis correr, mas dois braços colocaram fim à minha intenção. Gritei com
todas as forças, e agora podia ouvir meu próprio grito chegar frenético aos
meus ouvidos – para logo em seguida uma voz familiar me acalmar:
– Está com febre, todo molhado
de suor. – Abri os olhos e o sol já nascera. Olhei para os lados, ainda
ofegando muito. Uma caneca com chá-de-laranja fumegava em minhas mãos.
– Bem quente... Corta a febre.
Mais tarde já pude sair do resguardo. Recobrados os sentidos, dei uma
volta pelo terreiro. Espichei até o pé de jamelão. Por curiosidade, olhei-o de
baixo a cima. Estava todo retorcido. Examinei atentamente o chão: seco,
completamente seco, sem um pingo de chuva. Conjeturei a possibilidade de sonho.
Mas, e os galhos retorcidos? Os rastros dos pés descalços no terreiro, as
cercas arrebentadas? Os cavalos que não se encontravam presos? As tabuinhas
reviradas na cumeeira – pela ventania, só pode!
Passei o dia encabulado, minha mãe enchendo-me de todo tipo de chá e
simpatia. “Tá esquisito, esse menino”, ouvia ao longe como se as vozes ecoassem
através de um longo túnel.
Acredito que estava dormindo, quando um estrondo me fez acordar e saltar
da cama com o cobertor na mão. Não dormi de imediato. Depois de um tempo,
voltei a pegar no sono. Quando levantei, a manhã estava escura de nuvens, como
nas vésperas, porém a fumaça era menos intensa. E observando melhor, as nuvens
pareciam mais baixas e mais pesadas, como se tivessem inchadas, ou prenhes de
chuva. Cheguei a sorrir com esse fugaz pensamento.
O calor não estava tão insuportável como nos dias anteriores. Se minha
imaginação não me traía, uma corrente chegava tímida de algum buraco. Ergui a
cabeça e farejei o cheiro de ar fresco, como há muito não sentia. A terra
vibrou como que estremunhada de sono profundo.
Por instinto, joguei-me ao chão. Mal tive tempo de gritar, quando as aves
de rapina bateram asas e abandonaram o galho seco depois de muito tempo. A
chuva chegou num repente, como se as nuvens abrissem suas barrigonas. Aos
poucos os barulhos das coisas foram retornando. Dava para cheirar o ar. E o
cheiro de podre chegou através da bica d’água. Passou pela cozinha e correu
escura por um tempo. Depois, clareou e levou consigo o cheiro de podre. O
riozinho que quase se finara, ergueu-se com uma orquestra de ruídos.
Um relincho vindo do curral despertou minha atenção. Os cavalos haviam
retornado. Meu coração saltou alegre. Entre todos, reconheci o potro que havia
ganhado de presente de aniversário. Corri e o abracei pelo pescoço; ele
relinchou novamente como se não me visse há muito tempo. Suas crinas trançadas
caprichosamente em três pontas. Tentei desatar as tranças, mas uma dor aguda
impediu os movimentos de meus dedos. Meu pai ao lado me olhou com naturalidade.
Até sorria depois de muito tempo. Os meus dedos estavam em carne viva e
sangravam tingindo a crina do animal.