quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Insolação - (Estripulias do Saci)


Aqui tudo vai de mal a pior. Toda tarde uma grande nuvem surgia no horizonte arrastando-se em nosso rumo. Olhávamos como encantados para ela esperando o primeiro pingo. Nada. Ficávamos até tarde esperando o milagre do primeiro pingo. A noite avançava, a nuvem esvaía-se ficando a angústia ressecando a garganta. Ao apertar-lhe as tetas, em resposta, as pobres vacas soltavam um mugido de dor. No dia anterior a última tombou sem vida, em puro couro, osso e um fiapo de som rouco no lugar do mugido.
Ficou ali mesmo onde caíra. Não havia ânimo para arrastá-la para algum lugar. Nem tinha o que feder. Puro couro e osso. Nem os carcarás ousaram deixar o galho seco para apreciar a carniça. Ficaram pendurados aos galhos como frutas malditas de um tronco sem vida. A bica d’água parou de escorrer. Agora era preciso caminhar até o leito do córrego, pisar com cuidado para não espantar os ciscos, e encher a vasilha maior com uma menor.
Ontem mesmo, meu pai voltou do campo ainda mais desolado. Fiquei sabendo mais tarde, pela minha mãe – o potro que eu havia ganhado no aniversário passado, amanhecera morto no brejo. Certamente à procura de beber.
Quando me levantei, a manhã estava límpida. Nenhum risco de nuvem no infinito azul. Ao caminhar, os pés queimavam nas labaredas invisíveis. Dava dois ou três saltos antes de me acomodar sob alguma moita de arbustos ressequidos. Andei sem um propósito sequer. O calor insuportável enervava todos. Eu me mexia saltitante em volta da casa. Minha mãe resmungava num canto.
O calor insuportável, os resmungos, as aves de rapina quietas, o silêncio do mau pai, a nuvem que vinha todas as tardes arrastando a barrigona sobre os galhos secos. Ainda para completar, começaram os espirrar sem parar. O motivo devia ser uma onda de fumaça que se aproximava rastejante, afagando tudo que encontrava pela frente. Ainda ouvi meu pai gritar do limiar da porta, “os diabos abriram a porta do inferno! Não há outra explicação”. Depois, senti que a terra se remexia sob meus pés, fazia ondas gigantes e em seguida me precipitou num abismo vertiginoso.
Eu insistia em andar aos tropeços, agachado sobre os calcanhares, deitando de barriga no chão. A terra dava voltas e mais voltas. Eu, determinado, enterrava as unhas no chão, sangrava, doía. Mas eu não podia me soltar. Com muito custo, alcancei a porta, olhei para os lados e não havia ninguém, embora eu continuasse a ouvir os resmungos de minha mãe no meio do redemoinho de silêncio. Meus dedos sangravam. Arrastei-me com os cotovelos até meu quarto. Subi com dificuldade na cama e fiquei quieto como bicho à espreita. As roupas estavam molhadas, e o corpo tremia de frio.
O rumor agora era o murmurar do vento contra os galhos das árvores na noite. Aos poucos o escuro foi se agitando. Ventos torciam os ingazeiros rufando trovões, estremecendo a terra. Deitado, observei através das frinchas da parede riscos dos raios no céu negro. A lamparina ao pé da cama não parava acesa por conta da ventania a invadir o quarto; e a luz era consumida pela escuridão.
No piquete, o tropel misturava-se ao retumbar das descargas dos trovões. Os animais incitavam em estridente disparada e esticavam até bater o peito no outro extremo do cercado. Viravam e reiniciavam a corrida, relinchando. Em meio a essa balbúrdia, finíssimos assovios rompiam a tempestade e feriam-me, como finas agulhas, os ouvidos – provocando estremecimento no corpo inteiro.
– Liga não, é o saci montando os cavalos. Ele aproveita as noites escuras para cavalgar e fazer tranças nas crinas dos animais. Quase se matam de correr, os pobres bichos. Dizem que ele é sozinho e assovia, procurando um companheiro. Por isso não é bom assoviar à noite; porque daí ele vem falar com você, querer amizade – diziam os mais velhos, jogando conversa fora, sentados à sombra copada do jamelão. Essa ideia me deixava apequenado.
Enrolava-me o mais que podia. Mas mesmo assim ainda era possível ver os relâmpagos através da espessa malha do cobertor. Os vultos se contorcendo do lado de fora me deixavam com dificuldades de respirar. Minha imaginação mirava monstros de todas as espécies, mesmo os olhos fechados. Meu coração agitava-se e as mãos trêmulas se esfregavam suadas.
O quarto vagava através da tempestade. Não saberia distinguir a realidade nesse momento. O que sei é que um homem, com um meio sorriso, aproximou-se de mim. Caminhando lentamente, estendeu-me os braços:
– Você assoviou para mim?
Meus sentidos me faltaram, o grito morreu na garganta. Tentei correr, percebi que tropeçara em algo estendido no chão. Caí de rosto na terra fria e, no desespero, olhei para o lado. Dei com as vistas nos pés da criatura. Estavam virados para trás.
Quis correr, mas dois braços colocaram fim à minha intenção. Gritei com todas as forças, e agora podia ouvir meu próprio grito chegar frenético aos meus ouvidos – para logo em seguida uma voz familiar me acalmar:
– Está com febre, todo molhado de suor. – Abri os olhos e o sol já nascera. Olhei para os lados, ainda ofegando muito. Uma caneca com chá-de-laranja fumegava em minhas mãos.
– Bem quente... Corta a febre.
Mais tarde já pude sair do resguardo. Recobrados os sentidos, dei uma volta pelo terreiro. Espichei até o pé de jamelão. Por curiosidade, olhei-o de baixo a cima. Estava todo retorcido. Examinei atentamente o chão: seco, completamente seco, sem um pingo de chuva. Conjeturei a possibilidade de sonho. Mas, e os galhos retorcidos? Os rastros dos pés descalços no terreiro, as cercas arrebentadas? Os cavalos que não se encontravam presos? As tabuinhas reviradas na cumeeira – pela ventania, só pode!
Passei o dia encabulado, minha mãe enchendo-me de todo tipo de chá e simpatia. “Tá esquisito, esse menino”, ouvia ao longe como se as vozes ecoassem através de um longo túnel.
Acredito que estava dormindo, quando um estrondo me fez acordar e saltar da cama com o cobertor na mão. Não dormi de imediato. Depois de um tempo, voltei a pegar no sono. Quando levantei, a manhã estava escura de nuvens, como nas vésperas, porém a fumaça era menos intensa. E observando melhor, as nuvens pareciam mais baixas e mais pesadas, como se tivessem inchadas, ou prenhes de chuva. Cheguei a sorrir com esse fugaz pensamento.
O calor não estava tão insuportável como nos dias anteriores. Se minha imaginação não me traía, uma corrente chegava tímida de algum buraco. Ergui a cabeça e farejei o cheiro de ar fresco, como há muito não sentia. A terra vibrou como que estremunhada de sono profundo.
Por instinto, joguei-me ao chão. Mal tive tempo de gritar, quando as aves de rapina bateram asas e abandonaram o galho seco depois de muito tempo. A chuva chegou num repente, como se as nuvens abrissem suas barrigonas. Aos poucos os barulhos das coisas foram retornando. Dava para cheirar o ar. E o cheiro de podre chegou através da bica d’água. Passou pela cozinha e correu escura por um tempo. Depois, clareou e levou consigo o cheiro de podre. O riozinho que quase se finara, ergueu-se com uma orquestra de ruídos.

Um relincho vindo do curral despertou minha atenção. Os cavalos haviam retornado. Meu coração saltou alegre. Entre todos, reconheci o potro que havia ganhado de presente de aniversário. Corri e o abracei pelo pescoço; ele relinchou novamente como se não me visse há muito tempo. Suas crinas trançadas caprichosamente em três pontas. Tentei desatar as tranças, mas uma dor aguda impediu os movimentos de meus dedos. Meu pai ao lado me olhou com naturalidade. Até sorria depois de muito tempo. Os meus dedos estavam em carne viva e sangravam tingindo a crina do animal.

sábado, 12 de outubro de 2013

Pique-ajuda



Acomodei-me e respirei fundo. A corrida minara-me as forças, mas tinha conseguido meu intento. Havia conseguido derrotá-lo da forma mais cruel. Escondi-lhe as roupas de escola. Ele apanhou muito. Fiquei com um pouco de pena e devolvi suas roupas às escondidas na varanda da casa. A camisa branca, vermelha de barro, mas devolvi. Também, quem manda se meter com a namorada dos outros. Ela não voltara comigo, mas havia largado ele, ali, no meio do pátio, na frente de todos os alunos.
Primeiro, às escondidas, pegamos um toco de batom de minha irmã mais velha; pintei a boca e quando ele saiu no intervalo da aula, beijei várias bocas vermelhas no caderno dele assinando com o nome de uma menina que não existia. Mas ela não haveria de saber esse detalhe.
Ela também merecia. Eles haviam combinado estudar juntos à tardinha. Foi um reboliço. Ela o estapeou na frente de todos. De quebra, minha irmã queria saber como o batom dela foi parar no caderno dele.
A noite tinha se aproximado a passos macios. Meu peito roncava querendo ar. Uma das mãos acudia o peito, a outra especada no pé de jamelão.
Meu tempo estava acabando, tinha novamente que ficar à disposição do pega. Mirei o vulto do pé de mamoneira e disparei uma corrida estrepitosa. Os calcanhares batiam na bunda, o vento soprava nos ouvidos, vuuuuuuuuuu! vuuuuuuuuuu! Meu sorriso ficou largo quando minha barriga sentiu o chão áspero sob a mamoneira.
A meninada batucava os pés descalços na terra batida. Eu, com uma orelha pregada no chão, ouvia o corre-corre que se aproximava e se afastava. A terra vibrava sob aqueles pés lépidos. O ar reverberava sob o efeito da algazarra das gargantas juvenis. Não se ouvia outra coisa além dos tuque-tuques acelerados e os berros. Ora ou outra vinha um grito dizer ao meu ouvido:
– Te peguei! Agora você é o pega!
Eu era um dos maiores do grupo. Mas não dos mais danados – esses, geralmente, são menores. A algazarra continuava. O ponto de referência era o pé de jamelão. Eu gostando de estar ali, na sombra da lua desmilinguida que desfilava lá no alto, parecendo foice sem cabo. Mesmo com sua luz fraquinha, ela atravessava as folhas da mamoneira e pincelava meu rosto com rajadas claras.
Pus-me de pé e firmei o pensamento no rumo da árvore. Minhas pernas desprenderam novamente uma corrida louca. Os ramos faziam arder minhas canelas de socó. Agora era um bando de pegas. Eu era o último a ser pego; porém, eu não sabia. Mirei a grande sombra, mas, quando já ia imaginando esticar o braço para tocar o jamelão, tropecei numa raiz e fui de cara na terra.
A noite entrou em meus olhos e ateou fogo na carne assim que ouvi uma gargalhada sátira emparelhada comigo. Minha mão estalou numa fuça, ardeu e formigou, estancando a maldita galhofa. Emergiu, imediatamente, um choro. A foice, lá do céu, cortou um pouco do escuro do meu olhar. O fogo do sangue acalentava as cinzas.
Tudo indicava calmaria quando muitas bocas gritaram em uníssono:
– CUIDADO!
Meu pescoço se torceu um pouco para a direita. Um objeto passou sibilando grosso junto à minha orelha, vuuuup! Chegou a arder – ainda que não muito –, instantes depois. Foi estrondar no peito do jamelão. Não diria nada em casa. De nada adiantava: custar-me-ia bem uma surra de vara verde, daquelas de levantar calombo, e depois a marca ficaria pregada na pele por uma semana.
Aquelas conjecturas me tiraram a inspiração para o pique-ajuda. Resolvi parar. Afinal, já “tava bem grandinho”, como dizia minha mãe.
Na manhãzinha, com o chilrear dos pássaros e a noite já tendo abandonado as galhadas do jamelão, acheguei-me bem perto para avaliar o estrago. Aquela maldita banda de tijolo molestou a minha orelha a noite inteira. A pobre estava agoniada, sensível. Minha mão esquerda a afagava levemente.
Por entre a forquilha do jamelão achei-o a me observar de lá do outro lado da cerca. Na diretoria, ele não abriu o bico. Apesar de não ter provas, sabia que tinha sido eu o sabotador de seu namoro. Mas não havia contado para ninguém. Era coisa a ser resolvida entre nós. Eu sabia disso, ele também. Ele era mais forte, eu me achava mais esperto. Por isso agia nas sombras, enquanto ele queria forra no meio da rua, me humilhar com as próprias mãos. Isso eu não deixaria acontecer. Ele ia e vinha, circulando em volta, à espera de uma única oportunidade, me olhando por baixo, bufando como um pequeno touro enjaulado.
Touros assim correm o risco de passar uma vida toda esperando. Às vezes, uma juventude, o que já é muito – e desistem.

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