sábado, 12 de outubro de 2013

Pique-ajuda



Acomodei-me e respirei fundo. A corrida minara-me as forças, mas tinha conseguido meu intento. Havia conseguido derrotá-lo da forma mais cruel. Escondi-lhe as roupas de escola. Ele apanhou muito. Fiquei com um pouco de pena e devolvi suas roupas às escondidas na varanda da casa. A camisa branca, vermelha de barro, mas devolvi. Também, quem manda se meter com a namorada dos outros. Ela não voltara comigo, mas havia largado ele, ali, no meio do pátio, na frente de todos os alunos.
Primeiro, às escondidas, pegamos um toco de batom de minha irmã mais velha; pintei a boca e quando ele saiu no intervalo da aula, beijei várias bocas vermelhas no caderno dele assinando com o nome de uma menina que não existia. Mas ela não haveria de saber esse detalhe.
Ela também merecia. Eles haviam combinado estudar juntos à tardinha. Foi um reboliço. Ela o estapeou na frente de todos. De quebra, minha irmã queria saber como o batom dela foi parar no caderno dele.
A noite tinha se aproximado a passos macios. Meu peito roncava querendo ar. Uma das mãos acudia o peito, a outra especada no pé de jamelão.
Meu tempo estava acabando, tinha novamente que ficar à disposição do pega. Mirei o vulto do pé de mamoneira e disparei uma corrida estrepitosa. Os calcanhares batiam na bunda, o vento soprava nos ouvidos, vuuuuuuuuuu! vuuuuuuuuuu! Meu sorriso ficou largo quando minha barriga sentiu o chão áspero sob a mamoneira.
A meninada batucava os pés descalços na terra batida. Eu, com uma orelha pregada no chão, ouvia o corre-corre que se aproximava e se afastava. A terra vibrava sob aqueles pés lépidos. O ar reverberava sob o efeito da algazarra das gargantas juvenis. Não se ouvia outra coisa além dos tuque-tuques acelerados e os berros. Ora ou outra vinha um grito dizer ao meu ouvido:
– Te peguei! Agora você é o pega!
Eu era um dos maiores do grupo. Mas não dos mais danados – esses, geralmente, são menores. A algazarra continuava. O ponto de referência era o pé de jamelão. Eu gostando de estar ali, na sombra da lua desmilinguida que desfilava lá no alto, parecendo foice sem cabo. Mesmo com sua luz fraquinha, ela atravessava as folhas da mamoneira e pincelava meu rosto com rajadas claras.
Pus-me de pé e firmei o pensamento no rumo da árvore. Minhas pernas desprenderam novamente uma corrida louca. Os ramos faziam arder minhas canelas de socó. Agora era um bando de pegas. Eu era o último a ser pego; porém, eu não sabia. Mirei a grande sombra, mas, quando já ia imaginando esticar o braço para tocar o jamelão, tropecei numa raiz e fui de cara na terra.
A noite entrou em meus olhos e ateou fogo na carne assim que ouvi uma gargalhada sátira emparelhada comigo. Minha mão estalou numa fuça, ardeu e formigou, estancando a maldita galhofa. Emergiu, imediatamente, um choro. A foice, lá do céu, cortou um pouco do escuro do meu olhar. O fogo do sangue acalentava as cinzas.
Tudo indicava calmaria quando muitas bocas gritaram em uníssono:
– CUIDADO!
Meu pescoço se torceu um pouco para a direita. Um objeto passou sibilando grosso junto à minha orelha, vuuuup! Chegou a arder – ainda que não muito –, instantes depois. Foi estrondar no peito do jamelão. Não diria nada em casa. De nada adiantava: custar-me-ia bem uma surra de vara verde, daquelas de levantar calombo, e depois a marca ficaria pregada na pele por uma semana.
Aquelas conjecturas me tiraram a inspiração para o pique-ajuda. Resolvi parar. Afinal, já “tava bem grandinho”, como dizia minha mãe.
Na manhãzinha, com o chilrear dos pássaros e a noite já tendo abandonado as galhadas do jamelão, acheguei-me bem perto para avaliar o estrago. Aquela maldita banda de tijolo molestou a minha orelha a noite inteira. A pobre estava agoniada, sensível. Minha mão esquerda a afagava levemente.
Por entre a forquilha do jamelão achei-o a me observar de lá do outro lado da cerca. Na diretoria, ele não abriu o bico. Apesar de não ter provas, sabia que tinha sido eu o sabotador de seu namoro. Mas não havia contado para ninguém. Era coisa a ser resolvida entre nós. Eu sabia disso, ele também. Ele era mais forte, eu me achava mais esperto. Por isso agia nas sombras, enquanto ele queria forra no meio da rua, me humilhar com as próprias mãos. Isso eu não deixaria acontecer. Ele ia e vinha, circulando em volta, à espera de uma única oportunidade, me olhando por baixo, bufando como um pequeno touro enjaulado.
Touros assim correm o risco de passar uma vida toda esperando. Às vezes, uma juventude, o que já é muito – e desistem.

Um comentário:

Unknown disse...

O texto vai-nos fazendo temer até onde vai a crueldade juvenil. Humaníssimo, ao não disfarçar nossos elementos vingativos. E muito bem escrito. Parabéns.

Postagens em Destaque

Angústia - Poema