Os
dedos se movimentavam constrangidos por entre as várias sensações – como se a
qualquer momento pudesse ser atacado por algo que desconhecia. Os sentidos
buscavam outras paragens, procurando perder a noção do tempo, quando ali,
postado diante do espelho antigo, desse com a moldura de madeira escura e
sinuosa. Os pés então oscilaram, como se plantados em uma nau estreita sobre
águas agitadas. Não sei por quanto tempo os fiapos de pensamentos circularam
esvoaçantes, como trapos de nuvens açoitadas pelo vento.
O
sorriso do espelho chicoteou minha insegurança, fez o sangue vibrar, queimando
o rosto. Uma expressão de quem adivinhara deliberadamente as minhas intenções.
Porém, não indicava reprovação, e sim, consentimento.
Atento
a cada detalhe, a cada músculo retesado, as mãos cuidadosamente esquadrinharam
o corpo nu entregue ao maior desespero. Meus olhos pularam para um vão no
espelho e correram para além, nos prédios baixos: o espelho enrugado e movediço
da lagoa, a linha sinuosa das montanhas, as matas, os paredões por onde em
tempos de chuva escorriam lentamente lesmas, tracejando as pedras negras com
filetes esbranquiçados.
Sabia
que lá de fora, a qualquer momento, viria uma pancada na porta. Isso me afligiu
de doer. Nem consigo imaginar qual seria minha reação, caso a porta se
rompesse, escancarando minha clausura; e, uma vez aberto, encontrassem o
armário onde ululam a turba ímpia e nodosa e lasciva. Temor de que os ventos
gerais, doidamente, invadam meus aposentos e ponham-nos, soltos, esse bando de
demônios travessos e inconsequentes. O riso retorcido pareceu ranger o metal do
espelho. Pousou sua mão na minha mão, num gesto amigo, e assim introduziu-me ao
mundo secreto das incertezas. Meus sentidos dançavam numa embriaguez, mesmo que
desejada, perturbadora. Faíscas abrasaram-me inteiro, chamas pairaram sobre meu
corpo. Perguntei-me, inquieto: sonho? Ai! Sonho ou realidade, a ele me
entregara estupidamente. Vertigem e frio. Um frio cristalino de quem não sente
mais as veias pulsarem. Tomado de incomum espanto, percebi que minha posição
visual havia se alterado. Agora eu via-o no centro do aposento, uma figura
distinta, mas pensativa. Dista de mim.
Moveu-se
com presteza e, com um gesto igual aos meus, vasculhou as gavetas com uma
segurança de quem conhece bem o ambiente. Serviu-se de cerveja e tabaco; encheu
o cachimbo com impaciência e envolveu-se em seguida em espessa nuvem de fumaça.
Coxeava levemente a perna esquerda. Em meio à fumaceira, aninhou-se em minhas
vestes de missa. Continuando a fumar, passou uma minuciosa revista pelo quarto,
retirou do bolso interno do meu casaco uma caixa de metal semelhante às usadas
pelos botânicos; que eu nunca tive.
Girou
no dedo indicador uma chave dourada. Atrevi-me, para iniciar conversa, a
fazer-lhe algumas perguntas sobre a caixa que parecia interessá-lo tanto. Mas
fui surpreendido com a sua antecipação:
–
Então,
não entende, não é mesmo?
A
pancada tão temida era naquele momento meu único nicho de Salvação, para talvez
me tirar daquele estúpido sonho. Mas... E se não fosse sonho?
Nenhum comentário:
Postar um comentário