terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A mãe e o filho da mãe - (Wander Piroli)


Se não tivesse esquecido a chave, havia pelo menos a chance de entrar sem que a velha mãe acordasse. E quando mais tarde ela dissesse: “Você está chegando agora, Luiz?”, ele responderia tranquilamente: “Não, mãe. Eu estou aqui escrevendo há muito tempo”. Fora inútil pular o portão, para que ele não rangesse na madrugada vazia, e caminhar pisando o chão do quintal com excesso de zelo. Agora estava diante da porta, imbecil e ainda um tanto bêbado, embora já tivesse posto tudo para fora. Mais uma vez bateria na janela do quarto. E a velha mãe se levantaria lentamente, passaria a mão engelhada no soalho em busca dos chinelos e, encolhida dentro da imensa camisola branca, viria abrir a porta. Merda. Prometera-lhe chegar mais cedo e ao sair de casa estava certo de que afinal cumpriria a palavra. Pensara inclusive que era um ótimo plano ficar em casa, de vez em quando, com a velha conversando calmamente
sobre velhas coisas. Rosália lembrara várias vezes que estava ficando tarde, e ele dissera “já vou” e tomava mais um gole: era também muito bom plano ficar deitado de cueca no soalho, com o copo e Rosália ao alcance da mão. A madrugada estava fria e agora o vento começava a estalar o zinco da coberta. Antes de olhar o céu – escuro e baixo – sentiu o cheiro da chuva que se aproximava. Ergueu a gola do paletó e pensou em ir ao tanque lavar a boca. Mas ouviu a cama ranger e logo a voz da velha mãe, rouca, chamá-lo:
— É você, Luiz?
— Sou eu, mãe.
— Esqueceu a chave?
Sim, disse consigo mesmo.
— Você esqueceu a chave? – repetiu a velha.
— Mãe, não fica aborrecida não.
Desde a primeira vez havia dito esta frase, e vinha repetindo-a com mais frequência nos últimos meses.
— Levanta devagar – recomendou o filho – e calce os chinelos. A chave porém tinha sido introduzida na fechadura.
— Pode empurrar que eu já abri – disse a velha mãe.
— Vai deitar primeiro, aqui fora está um vento danado. Não percebeu o ruído dos chinelos arrastando-se na direção do quarto. A senhora levantou descalça, disse em pensamento.
— Você falou que não demorava – observou a mãe lá do quarto, quando
ouviu a porta fechar-se novamente. O filho não disse nada. Acendeu a luz da sala, pôs o paletó na cadeira, tirou a gravata e com ela na mão entrou no quarto da velha mãe e sentou na beirada da cama. A velha estava deitada de lado, com os cabelos brancos espalhados na fronha, enquanto os olhos miúdos piscavam  dentro das pálpebras arruinadas. A luz da sala iluminava metade do quarto, metade da cama.
— A senhora não devia levantar descalça – disse o filho pousando-lhe a mão na fronte. – O tempo está muito ruim. A velha mãe sacudiu a cabeça:
— Tira esta mão gelada daqui. – E segurou-lhe imediatamente a mão, levou-a aos lábios e beijou-a.
— Luiz – começou a velha.
— Não, mãe – disse o filho retirando a mão vergonhosa.
— Você disse que vinha cedo.
— Pois é. Esqueci que era sábado.
— Ontem não era sábado. O filho calou-se.
— Isso não é vida, Luiz – continuou a velha mãe.
— Eu sei. Mas não quero que a senhora fique preocupada. Nós vamos acabar com isto, nós dois.
A velha ergueu um pouco a cabeça do travesseiro para vê-lo melhor. O filho desviou o rosto.
— Você está bêbado, Luiz?
— Oh, mãe. É claro que tomei alguma coisa. Mas nós vamos acabar com isto também.
— Você já prometeu tantas vezes.
— Agora é diferente – tornou o filho com o rosto ainda voltado para a parede. – E a senhora vai me ajudar. Nós dois, não é, mãe? A velha não respondeu. A essa altura, porém, ele já podia supor que seus olhos estivessem úmidos, e a sensação desagradável de sempre lhe galgava o peito. Teve vontade de aproximar-se da cabeceira e beijá-la, como costumava fazer antes, ou então pousar a mão muito de leve na sua cabeça; deixar apenas a mão, sua sórdida mão, naqueles cabelos de neve. A velha mãe dormiu depressa, a boca muito murcha, o rosto em paz.
Ele ouviu nitidamente os primeiros pingos de chuva no telhado. Levantou-se, tirou o sal-de-fruta do guarda-louças, pôs um pouco na concha da mão esquerda, coma outra encheu meio copo d’água, jogou o sal na água e tomou-a de um trago. Acendeu um cigarro eem seguida
encostou a porta do quarto da velha mãe. Já deve ser bem mais de três horas, pensou, e embora sentisse o corpo moído, tinha experiência suficiente para saber o que aconteceria se tentasse dormir agora. Tirou maquinalmente o maço de papéis da cômoda com a mesma inutilidade como que já o fizera tantas e tantas vezes, e sentou-se à mesa da sala. As palavras embaralhavam-se, as linhas dançando. Desviou os olhos na direção da janela, mantendo-os muito abertos, e ficou prestando atenção ao ruído da chuva lá fora. A chuva descera rápida, violenta, e batia pesadamente nas telhas e estalava e gemia o zinco da coberta do tanque. Antes que tivesse consciência das coisas que deveria fazer, já estava de pé e dirigiu-se para o quarto da velha mãe.
— Luiz.
— Uai, mãe, pensei que a senhora estivesse dormindo. Espera aí que eu vou puxar a cama.
— Mas que chuva. – A velha levantou a cabeça do travesseiro. O filho arrastou a cama até junto ao guarda-roupa, para evitar a goteira que costumava cair nos pés da cama.
— Luiz, põe também o pano aqui n chão e as latas na cozinha porque senão amanhã fica tudo alagado. Obedeceu, como se cumprisse um antigo e permanente ritual. Parou depois perto do leito:
— Pronto, mãe. Agora a senhora trate de dormir.
— Você não vai deitar também?
— Daqui a pouco.
— Já é muito tarde, Luiz. Eu achava melhor você ir deitar de uma vez.
— Estou sem sono e quero ver se aproveito para escrever um pedaço.
— Deixa pra amanhã, meu filho. Você devia fazer essas coisas sempre de manhã, por causa dos olhos.
— Está bem. É só um pouco, e logo depois eu deito. A velha ajeitou-se debaixo da coberta, não adiantava insistir. E agora, enquanto o sono não viesse de novo, teria algum tempo para pensar no filho, na vida que o filho levava ou na vida que levava o filho. Ele voltou para a sala e olhou o maço de papéis em cima da mesa. Porcaria, disse para si mesmo. Há dois meses estava empacado naquela cópula e a coisa lhe verrumava os miolos e, por mais que se esforçasse, não conseguia que os dois fizessem o amor com verdade. E tudo se passava também numa noite de chuva, havia inclusive cheiro de chuva através da janela, e isto constituía uma boa base, mas a história não convencia. Um trovão rebentou súbito, e o estrondo repercutiu na casa.
— Luiz.
— Estou aqui, mãe. A senhora levou susto?
— Não. Eu estava acordada e vi antes o relâmpago.
— Vou levar um copo d’água pra senhora.
— Precisa não.
— Eu levo, mãe.
— Pode deixar que eu não quero. Você se assustou?
— Não.
A luz da sala piscou duas vezes como se fosse apagar. O filho levantou-se.
— Você está procurando a vela?
— Não, mãe, mas vou aproveitar para deixá-la de mão. Pode dormir sossegada.
— Luiz, vem cá.
— Sim.
Encontrou a velha sentada na cama.
— Eu não estou lembrada de ter guardado o frango na coberta.
— Deve ter guardado – disse o filho.
— Estava pensando nisso, Luiz. Fiz tanta coisa hoje de tarde que não me lembro.
— Aposto que a senhora guardou.
— Também acho, mas estou procurando lembrar. Você já imaginou se ele estiver fora nesse aguaceiro?
— Ele está debaixo da coberta, pode dormir sossegada. O filho esperou a mãe ajeitar-se, atravessou o quarto, passou pela cozinha e foi à privada, que dava para a coberta. Abriu a janelinha: o quintal estava escuro e a chuva continuava caindo intensamente. Sentou-se no vaso, apoiando as costas na parede. Experimentou fechar os olhos e viu até que ponto ainda estava sob efeito da bebida. O cubículo fazia-o sentir-se pior. Apressou-se e, retornando, deu com a velha novamente sentada na cama.
— O que é mãe?
— Não tem jeito de lembrar se guardei o frango.
— A senhora guardou.
— Se guardei, quando você passou pelo quintal deve ter visto se ele estava amarrado lá.
Vira-o sim, mas durante o dia. Um frango carijó, magrelo, amarrado pelo pé, com barbante, num dos moirões da cerca.
— Será que você viu?
— Não reparei, mãe. Estava muito escuro.
— É mesmo.
Sempre a velha comprava na véspera o frango do domingo e atava-o naquele moirão e, à tardinha, guardava-o debaixo da coberta.
— Sabe, Luiz – tornou a velha. – Estou achando que não guardei ele não. O filho não disse nada.
— Acho que esqueci.
— Esqueceu não, mãe.
— Você acha que não?
— A senhora nunca esquece.
A chuva persistia e o barulho das goteiras caindo nas latas da cozinha entrava pelo quarto.
— Coitado – continuou a velha.
— Por que vamos comê-lo no almoço?
— Não. Estou dizendo se ele ficou lá.
— Ora, mãe, a senhora guardou o frango.
— Será que eu guardei mesmo?
— Com toda certeza.
— Tenho pena dele, Luiz.
— Está bem, eu vou lá ver.
— Não, meu filho. Você não pode ir debaixo dessa chuva.
— Eu pego o guarda-chuva.
— Deixa ficar. Aqui dentro está quente.
O filho voltou à sala, pôs o paletó na cabeça e abriu a porta vagarosamente. Sentiu o ar frio e úmido da madrugada no rosto. Avançou com cuidado no chão lamacento. Curvou-se no escuro perto do lugar onde supunha estar a cerca. Agachou-se mais e pôs-se a tatear o chão. Esbarrou em algo molhado, inerte. Percebeu logo o contato das penas e através delas a melhor parte do que seria o almoço do domingo. Arrancou rápido o barbante da cerca e, antes que pensasse e depois dissesse “puta merda”, já havia atirado o frango por sobre o telhado da cozinha, no lote baldio.
— Então, Luiz? – perguntou a velha.
— Ele está lá – disse o filho jogando o paletó ensopado debaixo da pia.
— Ainda bem – disse a velha. – Você já pensou se ele tivesse ficado na tempestade?
— Pois é. Agora a senhora trate de dormir.
— Deus te abençoe. Luiz – disse a velha.
O filho apagou a luz da sala, foi para o quarto, tirou os sapatos enlameados, sentou na cama e ali ficou até fazer de novo 25 anos.

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Conto de Wander Piroli  extraído do Suplemento Literário de Minas Gerais - Belo Horizonte, Novembro/2011 - www.cultura.mg.gov.br  .



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