Se não tivesse esquecido a chave, havia pelo menos a chance de
entrar sem que a velha mãe acordasse. E quando mais tarde ela dissesse: “Você
está chegando agora, Luiz?”, ele responderia tranquilamente: “Não, mãe. Eu
estou aqui escrevendo há muito tempo”. Fora inútil pular o portão, para que ele
não rangesse na madrugada vazia, e caminhar pisando o chão do quintal com excesso
de zelo. Agora estava diante da porta, imbecil e ainda um tanto bêbado, embora
já tivesse posto tudo para fora. Mais uma vez bateria na janela do quarto. E a
velha mãe se levantaria lentamente, passaria a mão engelhada no soalho em busca
dos chinelos e, encolhida dentro da imensa camisola branca, viria abrir a
porta. Merda. Prometera-lhe chegar mais cedo e ao sair de casa estava certo de
que afinal cumpriria a palavra. Pensara inclusive que era um ótimo plano ficar
em casa, de vez em quando, com a velha conversando calmamente
sobre velhas coisas. Rosália lembrara várias vezes que estava ficando
tarde, e ele dissera “já vou” e tomava mais um gole: era também muito bom plano
ficar deitado de cueca no soalho, com o copo e Rosália ao alcance da mão. A
madrugada estava fria e agora o vento começava a estalar o zinco da coberta.
Antes de olhar o céu – escuro e baixo – sentiu o cheiro da chuva que se
aproximava. Ergueu a gola do paletó e pensou em ir ao tanque lavar a boca. Mas
ouviu a cama ranger e logo a voz da velha mãe, rouca, chamá-lo:
—
É você, Luiz?
—
Sou eu, mãe.
—
Esqueceu a chave?
Sim,
disse consigo mesmo.
—
Você esqueceu a chave? – repetiu a velha.
—
Mãe, não fica aborrecida não.
Desde
a primeira vez havia dito esta frase, e vinha repetindo-a com mais frequência
nos últimos meses.
— Levanta devagar – recomendou o filho – e calce os chinelos. A
chave porém tinha sido introduzida na fechadura.
—
Pode empurrar que eu já abri – disse a velha mãe.
— Vai deitar primeiro, aqui fora está um vento danado. Não
percebeu o ruído dos chinelos arrastando-se na direção do quarto. A senhora
levantou descalça, disse em pensamento.
— Você falou que não demorava – observou a mãe lá do quarto,
quando
ouviu a porta fechar-se novamente. O filho não disse nada.
Acendeu a luz da sala, pôs o paletó na cadeira, tirou a gravata e com ela na
mão entrou no quarto da velha mãe e sentou na beirada da cama. A velha estava
deitada de lado, com os cabelos brancos espalhados na fronha, enquanto os olhos
miúdos piscavam dentro das pálpebras
arruinadas. A luz da sala iluminava metade do quarto, metade da cama.
— A senhora não devia levantar descalça – disse o filho
pousando-lhe a mão na fronte. – O tempo está muito ruim. A velha mãe sacudiu a
cabeça:
— Tira esta mão gelada daqui. – E segurou-lhe imediatamente a
mão, levou-a aos lábios e beijou-a.
— Luiz – começou a velha.
— Não, mãe – disse o filho retirando a mão vergonhosa.
— Você disse que vinha cedo.
— Pois é. Esqueci que era sábado.
— Ontem não era sábado. O filho calou-se.
— Isso não é vida, Luiz – continuou a velha mãe.
— Eu sei. Mas não quero que a senhora fique preocupada. Nós
vamos acabar com isto, nós dois.
A velha ergueu um pouco a cabeça do travesseiro para vê-lo
melhor. O filho desviou o rosto.
— Você está bêbado, Luiz?
— Oh, mãe. É claro que tomei alguma coisa. Mas nós vamos acabar
com isto também.
— Você já prometeu tantas vezes.
— Agora é diferente – tornou o filho com o rosto ainda voltado
para a parede. – E a senhora vai me ajudar. Nós dois, não é, mãe? A velha não
respondeu. A essa altura, porém, ele já podia supor que seus olhos estivessem
úmidos, e a sensação desagradável de sempre lhe galgava o peito. Teve vontade
de aproximar-se da cabeceira e beijá-la, como costumava fazer antes, ou então
pousar a mão muito de leve na sua cabeça; deixar apenas a mão, sua sórdida mão,
naqueles cabelos de neve. A velha mãe dormiu depressa, a boca muito murcha, o
rosto em paz.
Ele ouviu nitidamente os primeiros pingos de chuva no telhado. Levantou-se,
tirou o sal-de-fruta do guarda-louças, pôs um pouco na concha da mão esquerda,
coma outra encheu meio copo d’água, jogou o sal na água e tomou-a de um trago.
Acendeu um cigarro eem seguida
encostou a porta do quarto da velha mãe. Já deve ser bem mais de
três horas, pensou, e embora sentisse o corpo moído, tinha experiência
suficiente para saber o que aconteceria se tentasse dormir agora. Tirou
maquinalmente o maço de papéis da cômoda com a mesma inutilidade como que já o
fizera tantas e tantas vezes, e sentou-se à mesa da sala. As palavras
embaralhavam-se, as linhas dançando. Desviou os olhos na direção da janela,
mantendo-os muito abertos, e ficou prestando atenção ao ruído da chuva lá fora.
A chuva descera rápida, violenta, e batia pesadamente nas telhas e estalava e
gemia o zinco da coberta do tanque. Antes que tivesse consciência das coisas
que deveria fazer, já estava de pé e dirigiu-se para o quarto da velha mãe.
— Luiz.
— Uai, mãe, pensei que a senhora estivesse dormindo. Espera aí
que eu vou puxar a cama.
— Mas que chuva. – A velha levantou a cabeça do travesseiro. O
filho arrastou a cama até junto ao guarda-roupa, para evitar a goteira que
costumava cair nos pés da cama.
— Luiz, põe também o pano aqui n chão e as latas na cozinha
porque senão amanhã fica tudo alagado. Obedeceu, como se cumprisse um antigo e
permanente ritual. Parou depois perto do leito:
— Pronto, mãe. Agora a senhora trate de dormir.
— Você não vai deitar também?
— Daqui a pouco.
— Já é muito tarde, Luiz. Eu achava melhor você ir deitar de uma
vez.
— Estou sem sono e quero ver se aproveito para escrever um
pedaço.
— Deixa pra amanhã, meu filho. Você devia fazer essas coisas
sempre de manhã, por causa dos olhos.
— Está bem. É só um pouco, e logo depois eu deito. A velha
ajeitou-se debaixo da coberta, não adiantava insistir. E agora, enquanto o sono
não viesse de novo, teria algum tempo para pensar no filho, na vida que o filho
levava ou na vida que levava o filho. Ele voltou para a sala e olhou o maço de
papéis em cima da mesa. Porcaria, disse para si mesmo. Há dois meses estava
empacado naquela cópula e a coisa lhe verrumava os miolos e, por mais que se
esforçasse, não conseguia que os dois fizessem o amor com verdade. E tudo se
passava também numa noite de chuva, havia inclusive cheiro de chuva através da
janela, e isto constituía uma boa base, mas a história não convencia. Um trovão
rebentou súbito, e o estrondo repercutiu na casa.
— Luiz.
— Estou aqui, mãe. A senhora levou susto?
— Não. Eu estava acordada e vi antes o relâmpago.
— Vou levar um copo d’água pra senhora.
— Precisa não.
— Eu levo, mãe.
— Pode deixar que eu não quero. Você se assustou?
— Não.
A luz da sala piscou duas vezes como se fosse apagar. O filho levantou-se.
— Você está procurando a vela?
— Não, mãe, mas vou aproveitar para deixá-la de mão. Pode dormir
sossegada.
— Luiz, vem cá.
— Sim.
Encontrou a velha sentada na cama.
— Eu não estou lembrada de ter guardado o frango na coberta.
— Deve ter guardado – disse o filho.
— Estava pensando nisso, Luiz. Fiz tanta coisa hoje de tarde que
não me lembro.
— Aposto que a senhora guardou.
— Também acho, mas estou procurando lembrar. Você já imaginou se
ele estiver fora nesse aguaceiro?
— Ele está debaixo da coberta, pode dormir sossegada. O filho
esperou a mãe ajeitar-se, atravessou o quarto, passou pela cozinha e foi à
privada, que dava para a coberta. Abriu a janelinha: o quintal estava escuro e
a chuva continuava caindo intensamente. Sentou-se no vaso, apoiando as costas
na parede. Experimentou fechar os olhos e viu até que ponto ainda estava sob
efeito da bebida. O cubículo fazia-o sentir-se pior. Apressou-se e, retornando,
deu com a velha novamente sentada na cama.
— O que é mãe?
— Não tem jeito de lembrar se guardei o frango.
— A senhora guardou.
— Se guardei, quando você passou pelo quintal deve ter visto se
ele estava amarrado lá.
Vira-o sim, mas durante o dia. Um frango carijó, magrelo,
amarrado pelo pé, com barbante, num dos moirões da cerca.
— Será que você viu?
— Não reparei, mãe. Estava muito escuro.
— É mesmo.
Sempre a velha comprava na véspera o frango do domingo e atava-o
naquele moirão e, à tardinha, guardava-o debaixo da coberta.
— Sabe, Luiz – tornou a velha. – Estou achando que não guardei
ele não. O filho não disse nada.
— Acho que esqueci.
— Esqueceu não, mãe.
— Você acha que não?
— A senhora nunca esquece.
A chuva persistia e o barulho das goteiras caindo nas latas da
cozinha entrava pelo quarto.
— Coitado – continuou a velha.
— Por que vamos comê-lo no almoço?
— Não. Estou dizendo se ele ficou lá.
— Ora, mãe, a senhora guardou o frango.
— Será que eu guardei mesmo?
— Com toda certeza.
— Tenho pena dele, Luiz.
— Está bem, eu vou lá ver.
— Não, meu filho. Você não pode ir debaixo dessa chuva.
— Eu pego o guarda-chuva.
— Deixa ficar. Aqui dentro está quente.
O filho voltou à sala, pôs o paletó na cabeça e abriu a porta
vagarosamente. Sentiu o ar frio e úmido da madrugada no rosto. Avançou com
cuidado no chão lamacento. Curvou-se no escuro perto do lugar onde supunha
estar a cerca. Agachou-se mais e pôs-se a tatear o chão. Esbarrou em algo molhado,
inerte. Percebeu logo o contato das penas e através delas a melhor parte do que
seria o almoço do domingo. Arrancou rápido o barbante da cerca e, antes que
pensasse e depois dissesse “puta merda”, já havia atirado o frango por sobre o
telhado da cozinha, no lote baldio.
— Então, Luiz? – perguntou a velha.
— Ele está lá – disse o filho jogando o paletó ensopado debaixo
da pia.
— Ainda bem – disse a velha. – Você já pensou se ele tivesse
ficado na tempestade?
— Pois é. Agora a senhora trate de dormir.
— Deus te abençoe. Luiz – disse a velha.
O filho apagou a luz da sala, foi para o quarto, tirou os
sapatos enlameados, sentou na cama e ali ficou até fazer de novo 25 anos.
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Conto de Wander Piroli extraído do Suplemento Literário de Minas Gerais - Belo Horizonte, Novembro/2011 - www.cultura.mg.gov.br .
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Conto de Wander Piroli extraído do Suplemento Literário de Minas Gerais - Belo Horizonte, Novembro/2011 - www.cultura.mg.gov.br .
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