Acomodei-me e
respirei fundo. A corrida minara-me as forças, mas tinha conseguido meu
intento. Havia conseguido derrotá-lo da forma mais cruel. Escondi-lhe as roupas
de escola. Ele apanhou muito. Fiquei com um pouco de pena e devolvi suas roupas
às escondidas na varanda da casa. A camisa branca, vermelha de barro, mas
devolvi. Também, quem manda se meter com a namorada dos outros. Ela não voltara
comigo, mas havia largado ele, ali, no meio do pátio, na frente de todos os
alunos.
Primeiro, às
escondidas, pegamos um toco de batom de minha irmã mais velha; pintei a boca e
quando ele saiu no intervalo da aula, beijei várias bocas vermelhas no caderno
dele assinando com o nome de uma menina que não existia. Mas ela não haveria de
saber esse detalhe.
Ela também
merecia. Eles haviam combinado estudar juntos à tardinha. Foi um reboliço. Ela
o estapeou na frente de todos. De quebra, minha irmã queria saber como o batom
dela foi parar no caderno dele.
A noite tinha se aproximado a passos
macios. Meu peito roncava querendo ar. Uma das mãos acudia o peito, a outra
especada no pé de jamelão.
Meu tempo estava acabando, tinha
novamente que ficar à disposição do pega. Mirei o vulto do pé de mamoneira e
disparei uma corrida estrepitosa. Os calcanhares batiam na bunda, o vento
soprava nos ouvidos, vuuuuuuuuuu! vuuuuuuuuuu! Meu sorriso ficou largo quando
minha barriga sentiu o chão áspero sob a mamoneira.
A meninada batucava os pés descalços
na terra batida. Eu, com uma orelha pregada no chão, ouvia o corre-corre que se
aproximava e se afastava. A terra vibrava sob aqueles pés lépidos. O ar
reverberava sob o efeito da algazarra das gargantas juvenis.
Não se ouvia outra coisa além dos tuque-tuques acelerados e os berros. Ora ou
outra vinha um grito dizer ao meu ouvido:
– Te peguei!
Agora você é o pega!
Eu era um dos
maiores do grupo. Mas não dos mais danados – esses, geralmente, são menores. A
algazarra continuava. O ponto de referência era o pé de jamelão. Eu gostando de estar ali, na sombra da lua
desmilinguida que desfilava lá no alto, parecendo foice sem cabo. Mesmo com sua
luz fraquinha, ela atravessava as folhas da mamoneira e pincelava meu rosto com
rajadas claras.
Pus-me de pé e
firmei o pensamento no rumo da árvore. Minhas pernas desprenderam novamente uma
corrida louca. Os ramos faziam arder minhas canelas de socó. Agora era um bando
de pegas. Eu era o último a ser pego; porém, eu não sabia. Mirei a grande
sombra, mas, quando já ia imaginando esticar o braço para tocar o jamelão,
tropecei numa raiz e fui de cara na terra.
A noite entrou em meus olhos
e ateou fogo na carne assim que ouvi uma gargalhada sátira emparelhada comigo.
Minha mão estalou numa fuça, ardeu e formigou, estancando a maldita galhofa.
Emergiu, imediatamente, um choro. A foice, lá do céu, cortou um pouco do escuro
do meu olhar. O fogo do sangue acalentava as cinzas.
Tudo indicava calmaria
quando muitas bocas gritaram em uníssono:
– CUIDADO!
Meu pescoço se torceu um
pouco para a direita. Um objeto passou sibilando grosso junto à minha orelha,
vuuuup! Chegou a arder – ainda que não muito –, instantes depois. Foi estrondar
no peito do jamelão. Não diria nada em casa. De nada adiantava: custar-me-ia
bem uma surra de vara verde, daquelas de levantar calombo, e depois a marca
ficaria pregada na pele por uma semana.
Aquelas conjecturas me
tiraram a inspiração para o pique-ajuda. Resolvi parar. Afinal, já “tava bem
grandinho”, como dizia minha mãe.
Na manhãzinha, com o
chilrear dos pássaros e a noite já tendo abandonado as galhadas do jamelão,
acheguei-me bem perto para avaliar o estrago. Aquela maldita
banda de tijolo molestou a minha orelha a noite inteira. A pobre estava
agoniada, sensível. Minha mão esquerda a afagava levemente.
Touros assim correm o risco
de passar uma vida toda esperando. Às vezes, uma juventude, o que já é muito –
e desistem.
Um comentário:
O texto vai-nos fazendo temer até onde vai a crueldade juvenil. Humaníssimo, ao não disfarçar nossos elementos vingativos. E muito bem escrito. Parabéns.
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