A velha tapuia Rosa já não podia cuidar
da pequena lavoura que lhe deixara o marido. Vivia só com o filho, que passava
os dias na pesca do pirarucu e do peixe-boi, vendido no porto de Alenquer e de
que tiravam ambos o sustento, pois o cacau mal chegava para a roupa e para o
tabaco. Apesar da pobreza rústica da casa, com as suas portas de japá e as
paredes de sopapo, com o chão de terra batido, cavada pela ação do tempo, tinha
o tapuia em alguma conta o asseio. (...) Rosa tecia redes, e os produtos da sua
pequena indústria gozavam de boa fama nos arredores. A reputação do tapuio
crescera com a feitura de uma maqueira de tucum ornamentada com a coroa
brasileira, obra de ingênuo gosto, que lhe valera a admiração de toda a comarca,
e provocara a inveja do célebre Ana Raimunda, de Óbidos, o qual chegara o
formar uma fortunazinha com aquela especialidade, quando a indústria
norte-americana reduzira a inatividade os teares rotineiros do Amazonas (...)
Pedro era em 1865 um rapagão de dezenove anos, desempenado e forte. Tinha olhos
pequenos, tais quais os do pai, com a diferença de que eram vivos, e de uma negrura
de pasmar, A face era cor de cobre, as feições achatadas e grosseiras, de
caboclo legítimo, mas com um cunho de bondade e de candura, que atraía o
coração de quantos lhe punham a vista em cima.
Demais, serviçal e alegre até
ali. (...) E naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face à face toda
a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada
e distante do agitação social, concentra-se a alma num apático recolhimento
(...) O caboclo não ri, sorri apenas: e a sua natureza contemplativa revela-se
no olhar fixo e vago em que se lêem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição
da inteligência ao mundo objetivo, e dele assoberbada. Os seus pensamentos não
se manifestam em palavras por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão
comunicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão. (...) Ninguém o podia
dizer, mas é certo que até o princípio do ano de 1865, correram tranquilos os
dias no cacoual do velho Rosa. Quem não sabe o efeito produzido a beira do rio
pela notícia da declaração da guerra entre o Brasil e o Paraguai? Nas classes
mais favorecidas da fortuna, nas cidades principalmente, o entusiasmo foi
grande e duradouro.
Mas entre o povo miúdo, o medo do recrutamento para voluntário
da pátria foi tão intenso que muitos tapuios se meteram pelas matas e pelas
cabeceiras dos rios e ali viveram como animais bravios sujeitos a todo a
espécie de privações. (...) Descuidado e contente. Pedro labutava em paz, apesar
das desgraças do tempo, ouvidas aos domingos, depois da missa, no adro da
matriz. E quando lhe perguntavam se não receava o recrutamento", dizia com
a candura habitual, que nunca fizera mal a ninguém, e era filho único de mulher
viúva. Não contava, porém, com a ma vontade de Manuel de Andrade, mulato que era
seu rival na pesca das tartarugas (...) Pelas 7 horas da manhã, a velha Rosa tratava
do almoço e Pedro sentado á soleira do porta, preparava-se para caçar
papagaios, limpando uma bela espingarda de dois canos, quando viu adiantar-se
para o seu lado o capitão Fabrício, com os modos risonhos e corteses de um bom
vizinho. Pedro ergueu-se surpreso e acanhado e pôs-se a balbuciar cumprimentos
ao fazendeiro, cujo sorriso o enleava.
- Ora bom dia, seu Pedro. Então já sei
que vai à caça? E está com uma bonita arma / Quer vendê-la? (...) — Eh, eh! seu
Pedro, você esta um rapaz robusto e devia ser voluntário da Pátria. O governo
precisa de gente forte lá no sul para dar cabo do demônio do López. Ora, é uma vergonha
que você esteja a matar os pobrezinhos dos papagaios quando melhor quebraria a
proa aos paraguaios, que são brutos também e inimigos dos cristãos.
Pedro balbuciava negativos e desculpas.
Era filho único...não tinha jeito para a guerra... Quem tomaria conta da pobre
velhinha? Mas o capitão pôs-lhe a mão no ombro dizendo em voz repassada de mel:
- Pois então tenha paciência. Se não
quer ser voluntário, está recrutado.
(...) Pedro deu um pulo para trás, como
se fora mordido por uma cobra. Recrutado, ele! A palavra fatídica soou-lhe aos
ouvidos como anúncio de irreparável desgraça. O seu ar de candura e de bondade desapareceu
por encanto, e o rapaz ficou todo transformado, como o pai, quando lutava braço
a braço com alguma onça traiçoeira. Os olhos injetaram-se-lhe de sangue. Os
lábios entreabriram-se para deixar sair a palavra rebelde, mas só descobriram
os alvíssimos dentes, cerrados por um esforço violento. (...) O rapaz soltou um
grito surdo, avançou contra Fabrício, arrancou-lhe a espingarda das mãos e
brandiu-a sobre a cabeça do capitão, como se fora uma bengala.
Quando ia descarregar
a golpe, sentiu-se agarrado. Eram o sargento Moura e dois soldados, que, saindo
dum matagal próximo, se haviam aproximado sem ser vistos. Ao ruído da luta,
acudiu a velha Rosa, que soltando brados lamentosos, tentou arrancar o filho
aos soldados, mas o capitão Fabrício segurou-a por um braço e atirou-a de encontro
a um esteio da casa. (...) ferida e quase nua aos raios ardentíssimos do sol, a
velha Rosa, a boa e generosa velhinha teria sucumbido miseravelmente, se por
volta de meio dia não tivesse ali chegado o vizinho Inácio Mendes. O português
vira do seu porto passar a canoa que levava o recruta e, desconfiando do que sucedera,
viera, logo que pudera furtar algum tempo aos seus afazeres, informar-se do ocorrido.
Pobre tia Rosa! Em que miserando estado a encontrara! (...) quando acordara, a
claridade de um dia esplendido entrava pela transparência do japá.
A rede da
velha Rosa estava vazia. A mulher do Inácio Mendes correu ao porto e não achou
a montaria de pesca de Pedro. Estava eu a esse tempo em Santarém, preparando
uma viagem a Itaituba, a serviço da minha advocacia. Passeando uma tarde na
praia do Tapajós, abeirou-se de mim uma cabocla velha em quem a custo reconheci
a industriosa e boa velhinho do igarapé de Alenquer, em cujo hospitaleiro casa
dormira algumas vezes de passagem pelo sítio (...) Contou-me a sua história,
interrompendo-se a miúdo para limpar na manga do vestido as lagrimas que lhe
corriam, e finalizou entregando-me um embrulho com dinheiro, duzentos e poucos
mil réis, tudo quanto tinha, para que lhe livrasse o filho de jurar bandeira.
Voltei imediatamente à cidade e, por intermédio de um amigo comum, obtive do
delegado de polícia a licença de ver o recruta na cadeia, mas por uma só vez, e
como exceção rara.
O tapuio estava mergulhado num silêncio apático, de que nada
o fazia sair (...) Empreguei a maior atividade nas diligências necessárias,
porque sabia que era esperado a toda hora a vapor da Companhia do Amazonas, que
devia levar o contingente de recrutas para a capital. Uma manha, vinha eu da
casa do juiz com os melhores esperanças de êxito, pois se mostrava crente do
direito que assistia ao meu cliente, e compadecido da sorte da velha que lhe
não deixava a soleira da porta onde dormia. (...) Começou logo o embarque dos
recrutas. Eram vinte rapazes tapuios os que a autoridade obrigava a representar
a comédia do voluntariado. Vi-os sair da cadeia, entre duas filas de guardas
nacionais, e encaminharem-se para o porto, seguidos dos parentes, dos amigos e
de simples curiosos. Iam cabisbaixos, uns corridos de vergonha, como criminosos
obrigados a percorrer as ruas da cidade nas garras da justiça; outros,
resignados e imbecis como bois, caminhando para o matadouro; (...) Os curumins anunciavam
os recrutas à medida que se aproximavam: - Os voluntários! Os voluntários!
Voluntários de pau e corda! disse
cousticamente o vigário padre Pereira, fumando cigarros a porta de uma loja Apesar
da tristeza do espetáculo que me compungia o coração, não pude deixar de
alegrar-me por não ver entre os recrutas o filho da velha Rosa. Acompanhei a
leva desde o quartel até a praia, vi-a emborcar, não me afastei enquanto o
vapor não levantou ferros e procurou a barra do Tapajós, soltando um silvo
rouco e prolongado. Adquiri então a certeza de que Pedro não embarcara (...)
Comuniquei a nova à tia Rosa que fui encontrar sentado à porta do juiz de direito,
onde passara a noite. Não partilhou da minha convicção. Na sua opinião, eu
estava enfeitiçada. Pedro não estava no quartel e, portanto, seguira naquele
mesmo vapor para a capital. Levei à conta de demência a incredulidade da velha
e entrei na casa do juiz para informar-me do resultado do habeas-corpus.
O magistrado disse-me com alguma tristeza:
- Escusado é tentar mais nada. O rapaz
já embarcou. (...) Ainda ha bem pouco tempo, vagava pela cidade de Santarém uma
pobre tapuia doida. A maior parte do dia passava-o a percorrer a praia, com o olhar
perdido no horizonte, contando com voz tremula e desenxabida a quadrinha
popular:
Meu anel de diamantes caiu n’àgua e foi
ao fundo: os peixinhos me disseram: viva Dom Pedro Segundo.
Fonte: www.passeiweb.com
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