História do Sertão
À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam
a canela-d'ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com
grande escadaria de pedra levando ao alpendre, não parecia desamparada. O
viandante a avistava de longe, com a capela ao lado e a cruz de pedra lavrada,
enegrecida, de braços abertos, em prece contrita para o céu. Naquele escampado
onde não ria ao sol o verde escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava
ainda mais o verde esmaiado dos campos.
E quem não fosse vaqueano naqueles sítios iria, sem dúvida,
estacar diante da grande porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que
a gente da fazenda era tão esquiva que nem ao menos aparecia à janela quando a
cabeçada da madrinha da tropa, carrilhonando à frente dos lotes, guiava os
cargueiros pelo caminho a fora.
Entestando com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios
de aroeira e mourões cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da
casa, convidando o viandante a abrigar-se nele. No chão havia ainda uma trempe
de pedra com vestígios de fogo e, daqui e dacolá, no terreno acamado e liso,
esponjadouros de animais vagabundos.
Muitas vezes os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho,
trotavam para lá, esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns
contra os outros as cobertas de couro cru; entravam pelo rancho adentro,
apinhavam-se, giravam impacientes à espera da descarga até que os tocadores a
pé, com as longas toalhas de crivo enfiadas no pescoço, falavam à mulada,
obrigando-a a ganhar o caminho.
Por que seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as
marchas e aguarem a tropa, não pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite,
teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitência, cantassem com voz
fanhosa a encomendação. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não
estava por essas abusões e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada.
Montado em sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu
macho crioulo por nome "Fidalgo" - dizia ele que tinha corrido todo
este mundo, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o
coração bater apressado de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver até
onde chegavam os receios do povo.
Dito e feito.
Passando por aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no
rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela
resolução inesperada, saltava das selas ao guizalhar das rosetas no ferro
batido das esporas; e os tocadores, acudindo de cá e de lá, iam amarrando nas
estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em
desmontar, quedava-se de pé, recostado a um mourão de braúna, chapéu na coroa
da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente
fumo para o cigarro.
Os tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao
peso. Contra o costume, não proferiram uma jura, uma exclamação; só, às vezes,
uma palmada forte na anca de algum macho teimoso. No mais, o serviço ia-se
fazendo e o Manuel Alves continuava quieto.
As sobrecargas e os arrochos, os buçais e a penca de ferraduras,
espalhados aos montes; o surrão da ferramenta aberto e para fora o martelo, o
puxavante e a bigorna; os embornais dependurados; as bruacas abertas e o trem
de cozinha em cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à
beira do rancho, denunciaram ao arneiro que a descarga fora feita com a ordem
do costume, mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo na
aventura.
Então, o arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais
para examinar as pisaduras; mandou atalhar à sovela algumas cangalhas, assistiu
à raspagem da mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acolá, fora da beira
do capão onde costumam crescer as ervas venenosas.
Dos camaradas, o Venâncio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se
a fundo os dois tropeiros, desde o tempo em que puseram o pé na estrada pela
primeira vez, na era da fumaça, em trinta e três. Davam de língua às vezes, nos
serões de pouso, um pedação de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados
nos fardos ou estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada
doída de uma cantilena saudosa.
Venâncio queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois
viu logo que o Manuel Alves, ficando ai, tramava alguma das dele.
- O macho lionanco está meio sentido da viagem, só Manuel.
- Nem por isso. Aquele é couro n'água. Não é com duas distâncias
desta que ele afrouxa.
- Pois olhe, não dou muito para ele urrar na subida do morro.
- Este? Não fale!
- Inda
malhando nesses carrascos cheios de pedra, então é que ele se entrega de todo.
- Ora!
- Vossemecê
bem sabe: por aqui não há boa pastaria; acresce mais que a tropa deve andar
amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos
daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso não presta; a tropa amanhece
desbarrigada que é um Deus nos acuda.
- Deixe de poetagens, Venâncio! Eu sei cá.
- Vossemecê pode saber, eu não duvido; mas na hora da coisa feia,
quando a tropa pegar a arriar a carga pela estrada, é um vira-tem-mão e
Venâncio p'r'aqui, Venâncio p'r'acolá.
Manuel deu um muxoxo. Em
seguida levantou-se de um surrão onde estivera assentado durante a conversa e
chegou à beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas trovas e,
voltando-se de repente para o Venâncio, disse:
- Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala
verdade uma vez.
- Hum, hum! Está aí! Eia, eia, eia!
~ Não temos eia nem peia. Puxe para fora minha rede.
- Já vou, patrão. Não precisa falar duas vezes.
E daí a pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada
por longas franjas pendentes.
- Que é que vossemecê determina agora?
- Vá lá à tapera enquanto é dia e arme a rede na sala da frente.
Enquanto isso, aqui também se vai cuidando do jantar...
O caldeirão preso à rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca no
espeto e a camaradagem, rondando à beira do fogo lançava à vasilha olhares
ávidos e cheios de angústias, na ansiosa expectativa do jantar. Um, de passagem
atiçava o fogo, outro carregava o ancorote cheio de água fresca; qual corria a
lavar os pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha.
Houve um momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha
oficiosidade, arremangou aos parceiros dizendo-lhes:
- Arre! Tem tempo, gente! Parece que vocês nunca viram feijão.
Cuidem de seu que fazer, se não querem sair daqui a poder de tição de fogo!
Os camaradas se afastaram, não querendo turrar com cozinheiro em
momento assim melindroso.
Pouco depois chegava o Venâncio, ainda a tempo de servir o jantar
ao Manuel Alves.
Os tropeiros formavam roda, agachados, com os pratos acima dos
joelhos e comiam valentemente.
- Então? perguntou Manuel Alves ao seu malungo.
- Nada, nada, nada! Aquilo por lá, nem sinal de gente!
- Uai! É estúrdio!
- E vossemecê pousa lá mesmo?
- Querendo Deus, sozinho, com a franqueira e a garrucha, que nunca
me atraiçoaram.
- Sua alma, sua palma, meu patrão. Mas... é o diabo!
- Ora! Pelo buraco da fechadura não entra gente, estando bem
fechadas as portas. O resto, se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de
fazer por almoçá-la. Venâncio, defunto não levanta da cova. Você há de saber
amanhã.
- Sua alma, sua palma, eu já disse, meu patrão; mas, olhe, eu já
estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho escapado de
algumas. Agora, o que eu nunca quis foi saber de negócio com assombração. Isso
de coisa do outro mundo p'r'aqui mais p'r'ali - terminou o Venâncio,
sublinhando a última frase com um gesto de quem se benze.
Manuel Alves riu-se e, sentando-se numa albarda estendida, catou
uns gravetos do chão e começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando
arabescos.... A camaradagem, reconfortada com o jantar abundante, tagarelava e
ria, bulindo de vez em quando no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um
rasgado na viola e outro - namorado, talvez, encostado ao esteio do rancho,
olhava para longe, encarando a barra do céu, de um vermelho enfumaçado e,
falando baixinho, co'a voz tremente, à sua amada distante...
II
Enoitara-se o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de
cera, há pouco aceso e pregado ao pé direito do rancho, fazia uma luz
fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer
as vozes do sapo-cachorro que latia lá num brejo afastado, sobre o qual os
vaga-lumes teciam uma trama de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da
mulada pastando, espalhada pelo campo. E o cincerro da madrinha, badalando
compassadamente aos movimentos do animal, sonorizava aquela grave extensão
erma.
As estrelas, em divina faceirice, furtavam o brilho às miradas dos
tropeiros que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as
cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o céu.
Um dos tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E
pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados
desta grande pátria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo
sentimento de amor à independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida
em comum, responderam em coro, cantando o estribilho. A princípio timidamente,
as vozes meio veladas deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se,
animando-se, a solidão foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons
dessa música espontânea e simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a
alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira irmã gêmea
das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do
gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tormentas. O idílio ou a
luta, o romance ou a tragédia viveram no relevo extraordinário desses versos
mutilados, dessa linguagem brutesca da tropeirada.
E, enquanto um deles,
rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da
noite nesse ermo consistório das almas penadas - outro, o Joaquim Pampa, lá das
bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na campanha, quando
corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os
últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo,
gritando-lhes:
- Ché, povo! Tá chegando a hora!
O último estribilho:
Deixa estar o jacaré:A lagoa há de secar
expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que
esperavam um tempo mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas
amolecessem para seus namorados fiéis:
Deixa estar o jacaré: A lagoa há de secar
O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos,
que contemplava absorto a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes. E
quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas
palavras, ditas em tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo
padecidas:
Rio Preto há de dar vauTé pra cachorro passar!
- Tá
chegando a hora!
- Hora
de que, Joaquim?
- De
aparecerem as almas perdidas. Ih! Vamos acender fogueiras em roda do rancho.
Nisto apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.
- Gente!
O patrão já está na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas vocês
sabem: ninguém gosta deste pouso mal-assombrado.
- Escute, tio
Venâncio. A rapaziada deve também vigiar a tapera. Pois nós havemos de deixar o
patrão sozinho?
- Que
se há de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos e havia de ir só,
porque assombração não aparece senão a uma pessoa só que mostre coragem.
- O povo diz que mais
de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas no dia seguinte, os
companheiros tinham que trazer defunto para o rancho porque, dos que dormem lá,
não escapa nenhum.
- Qual, homem! Isso
também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto. Eu cá não vou me fiando
muito na boca do povo, por isso é que eu não gosto de pôr o sentido nessas
coisas.
A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do
outro mundo. O silêncio e a solidão da noite, realçando as cenas fantásticas
das narrações de há pouco, filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um
como terror pela iminência das aparições.
E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros,
de armas aperradas alguns e olhos esbugalhados para o indeciso da treva;
outros, destemidos e gabolas, diziam alto.
- Cá por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão
certo como sem dúvida - e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de
sono.
Súbito, ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares
como o último grito de um animal ferido de morte.
Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente
para a beira do rancho.
Mas o Venâncio acudiu logo, dizendo:
- Até aí vou eu, gente! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou
vaqueano velho e posso contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente
ouve poucas vezes, mas ouve. Vocês têm razão: faz medo.
E os paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo
capão adentro.
III
Manuel Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar,
endireitou para a tapera, caminhando vagarosamente.
Antes de sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e
carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de
chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a também enfiada no
correão da cintura. Não lhe esqueceu o rolo de cera nem um maço de palhas. O
arneiro partira calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá
chegando, penetrou no pátio pela grande porteira escancarada.
Era noite.
Tateando com o pé, reuniu um molho de gravetos secos e,
servindo-se das palhas e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha arrancando paus
de cercas velhas, apanhando pedaços de tábua de peças em ruína, e com isso,
formou uma grande fogueira. Assim alumiado o pátio, o arneiro acendeu o rolo e
começou a percorrer as estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em
linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em
pé.
- Quero ver se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma
cama de bicho do mato.
E andava pesquisando, escarafunchando por aquelas dependências de
casa nobre, ora desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes
lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado!
- Senhor! Por que seria? - inquiriu de si para si o cuiabano e
parou à porta de uma senzala, olhando para o meio do pátio onde uma caveira
alvadia de boi-espáceo, fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaçá-lo com a
grande armação aberta.
Encaminhou para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria
em duas escadas, de um lado e de outro, como dois lados de um triângulo,
fechando no alpendre, seu vértice. No meio da parede e erguida sobre a sapata,
uma cruz de madeira negra avultava; aos pés desta, cavava-se um tanque de
pedra, bebedouro do gado da porta, noutro tempo.
Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande fechadura
sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado a dois
passos no assoalho.
Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada e no canto da
parede, embutido na alvenaria, um grande oratório com portas de almofada
entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido à parede e chegou o rosto
perto do oratório, procurando examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme,
alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos
redondos piscaram ameaçadores.
- Que é lá isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na
guia, encomendando Deus e a virgem Maria...
O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de
esconjuro e, cerrando a porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou
na casa pelo corredor comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe
preciso amparar com a mão espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de
jantar, onde uma mesa escura e de rodapés torneados, cercada de bancos
esculpidos, estendia-se, vazia e negra.
O teto de estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os
caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha de telhado. Por aí corria
uma goteira no tempo da chuva e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem
se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do
fundo. Enfiando por um corredor que parecia conduzir à cozinha, viu, ao lado, o
teto abatido de um quarto, cujo assoalho tinha no meio um montículo de
escombros. Olhou para o céu e viu, abafando a luz apenas adivinhada das
estrelas, um bando de nuvens escuras, roldando. Um outro quarto havia junto
desse e o olhar do arneiro deteve-se, acompanhando a luz do rolo no braço
esquerdo erguido, sondando as prateleiras fixas na parede, onde uma coisa
branca luzia. Era um caco velho de prato antigo. Manuel Alves sorriu para uma
figurinha de mulher, muito colorida, cuja cabeça aparecia ainda pintada ao vivo
na porcelana alva.
Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela
que olhava para fora, fez o arneiro voltar o rosto de repente e prosseguir o
exame do casara-o abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada
plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou
o ouvido, alerta; o som continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de
todo, ora vibrar ainda, mas sempre ao longe.
- É o vento, talvez, no sino da capela.
E penetrou num salão enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo,
deixou no chão uma réstia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num
tamborete de couro, tombado aí. O arneiro foi seguindo, acompanhando uma das
paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede.
- Acaba
aqui - murmurou.
Três grandes janelas no fundo estavam fechadas.
- Que
haverá aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver...
Tentou abrir uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava,
às vezes, reboando como uma vara de queixada em redemoinho no mato.
Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos.
Resistindo elas, o arneiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um
empurrão violento. A janela, num grito estardalhaçante, escancarou-se. Uma
rajada rompeu por ela adentro, latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda
houve um tatalar de portas, um ruído de reboco que cai das paredes altas e se
esfarinha no chão.
A chama do rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só,
babatando na treva.
Lembrando-se da binga sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra
com jeito e bateu-lhe o fuzil; as centelhas saltavam para a frente impelidas
pelo vento e apagavam-se logo. Então, o cuiabano deu uns passos para trás,
apalpando até tocar a parede do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os
lados, roçando-lhe as costas procurando o entrevão das janelas. Aí, acocorou-se
e tentou de novo tirar fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel
Alves soprou-a delicadamente, alentando-a com a principio, ela animou-se, quis
alastrar-se, mas de repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o
nas mãos e achou-o úmido; tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora
em que fazia a fogueira no pátio e percorria as dependências deste.
Meteu a binga no bolso e disse:
- Espera, diaba, que
tu hás de secar com o calor do corpo.
Nesse entremente a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e
longínqua. Então o cuiabano pôs-se de gatinhas, atravessou a faca entre os
dentes e marchou como um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos
arregalados, querendo varar a treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar,
arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote.
No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma
voz rouquenha pareceu proferir uma imprecação. O arneiro assentou-se nos
calcanhares, apertou o ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com
o punho cerrado nos feixos da arma, chamando a pólvora aos ouvidos e esperou. O
ruído cessara; só a zoada do sino continuava, intermitentemente.
Nada aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas.
Mas, desta vez, a garrucha, aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos
rítmicos, como a úngula de um quadrúpede manco. Ao passar junto ao quarto de
teto esboroado, o cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo
corredor a fora, apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou ouvindo um
farfalhar distante, um sibilo como o da refega no buritizal.
Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casarão escuro e a
ventania - alcatéia de lbos rafados - investiu uivando e passou à disparada,
estrondando uma janela. Saindo por aí, voltaram de novo os austros furentes,
perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente, pelos
salões vazios.
Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um
soído áspero de aço que ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas
assustadas... Pelo espaço todo ressoou um psiu, psiu, psiu... e um bando enorme
de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania.
Manuel foi impelido para a frente à corrimaça daqueles mensageiros
do negrume e do assombramento. De músculos crispados num começo de reação
selvagem contra a alucinação que o invadia, o arneiro alapardava-se,
eriçando-se-lhe os cabelos. Depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e
os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia.
E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito que fazia o
velho casarão falar ou gemer, ameaçá-lo ou repeti-lo, num conluio demoníaco com
o vento, os morcegos e a treva.
Começou a sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo
maligno. De vez em quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos
e uns animálculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa.
No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo
de um lado e de outro.
- Ah! vocês não me hão de levar assim-assim, não - exclamava o
arrieiro para o invisível. - Pode que eu seja onça presa na arataca. Mas eu
mostro! Eu mostro!
E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante.
Súbito, uma luz indecisa, coada por alguma janela próxima, fê-lo
vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando,
sacudindo-se. O vento trazia vozes estranhas das socavas da terra,
misturando-se com os lamentos do sino, mais acentuados agora.
Manuel estacou, com as fontes latejando, a goela constrita e a
respiração curta. A boca semi-aberta deixou cair a faca: o fôlego, a modo de um
sedenho, penetrou-lhe na garganta seca, sarjando-a e o arneiro roncou como um
barrão acuado pela cachorrada. Correu a mão pelo assoalho e agarrou a faca;
meteu-a de novo entre os dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e
apontou para o monstro; uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe
que sua arma fiel o traía. A escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O
arneiro arrojou contra o monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de
louco:
- Mandingueiros
do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram medo dos dentes
da minha garrucha! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações do demônio!
De um salto, arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com
ímpeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho,
onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou
pesadamente.
A queda assanhou-lhe a fúria e o arneiro, erguendo-se de um pulo,
rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar. Deu-lhe um bote e
estrincou nos dedos um como tecido grosso. Durante alguns momentos ficou no
lugar, hirto, suando, rugindo.
Pouco a pouco foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele
corpo estranho que seus dedos arrochavam! era um pano, de sua rede, talvez, que
o Venâncio armara na sala da frente.
Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do
vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam lá
dentro Manuel, Manuel, Manuel - em frases tartamudeadas. O arneiro avançou como
um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras que fugiam.
Foi dar na sala de jantar onde, pelo rasgão do telhado, pareciam
descer umas formas longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes
pastavam chamas rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.
O arneiro não pensava mais. A respiração se lhe tornara
estertorosa; horríveis contrações musculares repuxavam-lhe o rosto e ele,
investindo as sombras, uivava:
- Traiçoeiras!
Eu queria carne para rasgar com este ferro! Eu queria osso para esmigalhar num
murro!
As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida,
iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos
arrepiados ou dançando-lhe na frente. Era como uma chusma de meninos
endemoniados a zombarem dele, puxando-o daqui, beliscando-o d'acolá, açulando-o
como a um cão de rua.
O arneiro dava saltos de ugre, arremetendo contra o inimigo nessa
luta fantástica: rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça
esfaimada a que se escapa a presa. Houve um momento em que uma coréia demoníaca
se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel
ia recuando e aqueles círculos infernais o iam estringindo; as sombras giravam
correndo, precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando,
rojando no chão ou saracoteando desenfreadamente.
Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e
profundo e o arneiro deixou cair pesadamente a mão esquerda espalmada num
portal, justamente quando um morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte
pancada no rosto. Então, Manuel pulou novamente para diante, apertando nos
dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgão do telhado novas sombras desciam e
algumas, quedas, pareciam dispostas a esperar o embate.
O arneiro rugiu:
- Eu mato! Eu mato! Mato! - e acometeu com de alucinado aqueles
entes malditos. De um foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes,
fragor medonho se fez ouvir; o assoalho podre cedeu barrote, roído de cupins,
baqueou sobre uma coisa e desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel,
tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá embaixo. Ao mesmo
tempo, um som vibrante de metal, um tilintar como de moedas derramando-se pela
fenda uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arneiro.
Manuel lá no fundo, ferido, ensangüentado, arrastou-se ainda,
cravando as unhas na terra como um ururau golpeado de morte. Em todo o corpo
estendido com o ventre na terra, perpassava-lhe ainda uma crispação de luta;
sua boca proferiu ainda: - "Eu mato ! Mato! Ma..." - e um silêncio
trágico pesou sobre a tapera.
IV
O dia estava nasce-não-nasce e já os tropeiros tinham pegado na
lida. Na meia luz crepitava a labareda embaixo do caldeirão cuja tampa,
impelida pelos vapores que subiam, rufava nos beiços de ferro batido. Um cheiro
de mato e de terra orvalhada espalhava-se com a viração da madrugada.
Venâncio, dentro do rancho, juntava, ao lado de cada cangalha, o couro, o arrocho e
a sobrecarga. Joaquim Pampa fazendo cruzes na boca aos bocejos freqüentes, por
impedir que o demônio lhe penetrasse no corpo, emparelhava os fardos,
guiando-se pela cor dos topes cosidos aqueles. Os tocadores, pelo campo a fora,
ecavam um para o outro, avisando o encontro de algum macho fujão. Outros, em
rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa.
Pouco depois ouviu-se o tropel dos animais demandando o rancho. O
cincerro tilintava alegremente, espantando os passarinhos que se levantavam das
touceiras de arbustos, voando apressados. Os urus, nos capões, solfejavam à
aurora que principiava a tingir o céu e manchar de púrpura e ouro o capinzal
verde.
- Eh, gente! o
orvalho 'stá cortando, êta! Que tempão tive briquitando co'aquele macho
"pelintra". Diabo o leve! Aquilo é próprio um gato: não faz bulha no
mato e não procura as trilhas, por não deixar rastro.
- E
a "Andorinha"? Isso é que é mula desabotinada! Sopra de longe que nem
um bicho do mato e desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto que eu soltei
nela um matacão de pedra, de que ela havia de gostar pouco.
A rapaziada chegava à beira do rancho, tangendo a tropa.
- Que é da giribita?
Um trago é bom para cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o guampo, Aleixo.
- Uma hora é frio,
outra é calor, e vocês vão virando, cambada do diabo! - gritou o Venâncio.
- Largue da vida dos
outros e vá cuidar da sua, tio Venâncio! Por força que havemos de querer
esquentar o corpo: enquanto nós, nem bem o dia sonhava de nascer, já estávamos
atolados no capinzal molhado, vossemecê tava aí na beira do fogo, feito um
cachorro velho.
- Tá bom, tá bom, não
quero muita conversa comigo não. Vão tratando de chegar os burros às estacas e
de suspender as cangalhas. O tempo é pouco e o patrão chega de uma hora para a
outra. Fica muito bonito se ele vem encontrar essa sinagoga aqui! E por falar
nisso, é bom a gente ir lá. Deus é grande! Mas eu não pude fechar os olhos esta
noite! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha à mente alguma que pudesse
suceder a sô Manuel. Deus é grande!
Logo-logo o Venâncio chamou pelo Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais
o José Paulista.
- Deixamos esses meninos cuidando do serviço e nós vamos lá.
Nesse instante, um
molecote chegou com o café. A rapaziada cercou-o. O Venâncio e seus
companheiros, depois de terem emborcado os cuités, partiram para a tapera.
Logo à saída, o velho
tropeiro refletiu um pouco alto:
- É bom ficar um aqui tomando conta
do serviço. Fica você, Aleixo.
Seguiram os três, calados,
pelo campo a fora, na luz
Suave de antemanhã.
Concentrados em conjeturas sobre a sorte do arneiro, cada qual queria
mostrar-se mais sereno, andando lépido e de rosto tranqüilo; cada qual,
escondia do outro a angústia do coração e a fealdade do prognóstico.
José Paulista entoou uma cantiga que acaba neste estribilho:
A barra do dia ai vem!
A barra do sol também,
Ai!
A barra do sol também,
Ai!
E lá foram, cantando todos três, por espantar as mágoas. Ao
entrarem no grande pátio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel
Alves tinha feito na véspera. Sem mais detença, foram-se barafustando pela
escadaria do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo.
Experimentaram-na primeiro. A porta, fortemente especada por dentro, rinchou e
não cedeu.
Forcejaram os três e ela
resistiu ainda. Então, José Paulista correu pela escada abaixo e trouxe ao
ombro um cambão, no qual os três pegaram e, servindo-se dele como de um aríete,
marraram com a porta. As ombreiras e a verga vibraram aos choques violentos
cujo fragor se foi evolumando pelo casarão adentro em roncos profundos.
Em alguns instantes o
espeque, escapulindo do lugar, foi arrojado no meio do solho. A caliça que caía
encheu de pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos tropeiros - e a porta
escancarou-se.
Na sala da frente deram com a rede toda estraçalhada.
- Mau, mau, mau! - exclamou Venâncio não podendo mais conter-se.
Os outros tropeiros, de olhos esbugalhados, não ousavam proferir uma palavra.
Apenas apalparam com cautela aqueles farrapos de pano, malsinados, com certeza,
ao contato das almas do outro mundo.
Correram a casa toda juntos, arquejando, murmurando orações contra
malefícios.
- Gente, onde estará sô Manuel? Vocês não me dirão pelo amor de
Deus? - exclamou o Venâncio.
Joaquim Pampa e José Paulista calavam-se perdidos em conjeturas
sinistras.
Na sala de jantar, mudos um frente do outro, pareciam ter um
conciliábulo em que somente se lhes comunicassem os espíritos. Mas, de repente,
creram ouvir, pelo buraco do assoalho, um gemido estertoroso. Curvaram-se
todos; Venâncio debruçou-se, sondando o porão da casa.
A luz, mais diáfana, já alumiava o terreiro de dentro e entrava
pelo porão: o tropeiro viu um vulto estendido.
- Nossa Senhora! Corre, gente, que sô Manuel está lá embaixo,
estirado!
Precipitaram-se todos para a frente da casa, Venâncio adiante.
Desceram as escadas e procuraram o portão que dava para o terreiro de dentro.
Entraram por ele a fora e, embaixo das janelas da sala de jantar, um espetáculo
estranho deparou-se-lhes:
O arneiro, ensangüentado, jazia no chão estirado; junto de seu
corpo, de envolta com torrões desprendidos da abóbada de um forno desabado, um
chuveiro de moedas de ouro luzia.
- Meu patrão! Sô Manuelzinho! Que foi isso? Olhe seus camaradas
aqui. Meu Deus! Que mandinga foi esta? E a ourama que alumia diante dos nossos
olhos?!
Os tropeiros acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam
tremores convulsos. Seus dedos encarangados estrincavam ainda o cabo da faca,
cuja lâmina se enterrara no chão; perto da nuca e presa pela gola da camisa,
uma moeda de ouro se lhe grudara na pele.
- Sô Manuelzinho! Ai meu Deus! P'ra que caçar histórias do outro
mundo! Isso é mesmo obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. Olha esse
ouro, Joaquim! Deus me livre!
- Qual, tio Venâncio -
disse por fim José Paulista. - Eu já sei a coisa. Já ouvi contar casos desses.
Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que com a boca virada
para o terreiro. Aí é que está. Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou porque o
certo é que almas dos antigos donos desta fazenda não podiam sossegar enquanto
não topassem um homem animoso para lhe darem o dinheiro, com a condição de
cumprir, por intenção delas, alguma promessa, pagar alguma dívida, mandar dizer
missas; foi isso, foi isso! E o patrão é homem mesmo! Na hora de ver a
assombração, a gente precisa de atravessar a faca ou um ferro na boca, p'r'amor
de não perder a fala. Não tem nada, Deus é grande!
E os tropeiros, certos de
estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em tom solene. Mais de
uma vez persignaram-se e, fazendo cruzes no ar, mandavam ê que quer que fosse -
"para as ondas do mar" ou "para as profundas, onde não canta
galo nem galinha".
Enquanto conversavam iam
procurando levantar do chão o corpo do arneiro, que continuava a tremer. Às
vezes batiam-se-lhe os queixos e um gemido entrecortado lhe arrebentava da
garganta.
- Ah! Patrão, patrão!
Vossemecê, homem tão duro, hoje tombado assim! Valha-nos Deus! São Bom Jesus do
Cuiabá! Olha sô Manuel, tão devoto seu! - gemia o Venâncio.
O velho tropeiro,
auxiliado por Joaquim Pampa procurava, com muito jeito, levantar do chão o
corpo do arneiro sem magoá-lo. Conseguiram levantá-lo nos braços trançados em
cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do rancho, Venâncio disse ao José
Paulista:
- Eu não pego nessas
moedas do capeta. Se você não tem medo, ajunta isso e traz.
Paulista encarou algum
tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu tesouro. Era o
velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara estava fincada
no meio dos escombros. O tropeiro olhou para cima e viu, no alto, bem acima do
forno o buraco do assoalho por onde caíra o Manuel.
- É alto deveras! Que
tombo! - disse de si para si. - Que há de ser do patrão? Quem viu sombração
fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual! Esse dinheiro há de ser
de pouca serventia. Para mim, eu não quero: Deus me livre; então é que eu tava
pegado com essas almas do outro mundo! Nem é bom pensar!
O forno estava levantado junto de um pilar de pedra sobre o qual
uma viga de aroeira se erguia suportando a madre. De cá se via a fila dos
barrotes estendendo-se para a direita até ao fundo escuro.
José Paulista começou a catar as moedas e encher os bolsos da
calça; depois de cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor e,
estendendo-o no chão o foi enchendo também; dobrou as pontas em cruz e
amarrou-as fortemente. Escarafunchando os escombros do forno achou mais moedas
e com estas encheu o chapéu. Depois partiu, seguindo os companheiros que já iam
longe, conduzindo vagarosamente o arneiro.
As névoas volateantes fugiam impelidas pelas auras da manhã; sós,
alguns capuchos pairavam, muito baixos, nas depressões do campo, ou adejavam
nas cúpulas das árvores. As sombras dos dois homens que carregavam o ferido
traçaram no chão uma figura estranha de monstro. José Paulista, estugando o
passo, acompanhava com os olhos o grupo que o precedia de longe.
Houve um instante em que um pé-de-vento arrancou ao Venâncio o
chapéu da cabeça. O velho tropeiro voltou-se vivamente; o grupo oscilou um
pouco, concertando os braços do ferido; depois, pareceu a José Paulista que o
Venâncio lhe fazia um aceno: "apanhasse-lhe o chapéu".
Aí chegando, José Paulista arreou no chão o ouro, pôs na cabeça o
chapéu de Venâncio e, levantando de novo a carga, seguiu caminho a fora.
À beira do rancho, a tropa bufava escarvando a terra, abicando as
orelhas, relinchando à espera do milho que não vinha. Alguns machos malcriados
entravam pelo rancho adentro, de focinho estendido, cheirando os embornais.
Às vezes ouvia-se um grito: - Toma, diabo! - e um animal espirrava
para o campo à tacada de um tropeiro.
Quando lá do rancho se
avistou o grupo onde vinha o arneiro, correram todos. O cozinheiro, que vinha
do olho-d'água com o odre às costas, atirou com ele ao chão e disparou também.
Os animais já amarrados, espantando-se escoravam nos cabestros. Bem depressa a
tropeirada cercou o grupo. Reuniram-se em mó, proferiram exclamações,
benziam-se, mas logo alguém lhes impôs silêncio, porque voltaram todos,
recolhidos, com os rostos consternados.
O Aleixo veio correndo na frente para armar a rede de tucum que
ainda restava.
Foram chegando e José
Paulista chegou por último. Tropeiros olharam com estranheza a carga que este
conduzia; ninguém teve, porém, coragem de fazer uma pergunta: contentaram-se
com interrogações mudas. Era o sobrenatural, ou era obra dos demônios. Para que
saber mais? Não estava naquele estado o pobre do patrão?
O ferido foi colocado na rede havia pouco armada. Dos tropeiros
chegou com uma bacia de salmoura; outro, correndo do campo com um molho de
arnica, pisava a planta para extrair-lhe o suco. Venâncio, com pano embebido,
banhava as feridas do arneiro cujo corpo vibrava, então, fortemente.
Os animais olhavam curiosamente para dentro do rancho, afilando as orelhas.
Então Venâncio, com a fisionomia decomposta, numa apoiadura de
lágrimas, exclamou aos parceiros:
- Minha
gente! Aqui, neste deserto, só Deus Nosso Senhor! É hora, meu povo! - E
ajoelhando-se de costas para o sol que nascia, começou a entoar um -
"Senhor Deus, ouvi a minha oração e chegue a vós o meu clamor!" - E
trechos de salmos que aprendera em menino, quando lhe ensinaram a ajudar a
missa, afloram-lhe à boca.
Os outros tropeiros foram-se ajoelhando todos atrás do velho
parceiro que parecia transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes,
desconcertadas, sem que ninguém compreendesse o que dizia. Entretanto, parecia
haver uma ascensão de almas, um apelo fremente "in excelsis", na
fusão dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era, vez, a própria voz do
deserto mal ferido com as feridas seu irmão e companheiro, o fogoso cuiabano.
De feito, não pareciam
mais homens que cantavam: era um só grito de angústia, um apelo de socorro, que
do seio largo do deserto às alturas infinitas: - "Meu coração está ferido
e seco como a erva... Fiz-me como a coruja, que se esconde nas solidões!...
Atendei propicio à oração do desamparado e não desprezeis a sua
súplica..."
E assim, em frases soltas,
ditas por palavras não compreendidas, os homens errantes exalçaram sua prece
com as vozes robustas de corredores dos escampados. Inclinados para a frente,
com o rosto baixado para terra, as mãos batendo nos peitos fortes, não pareciam
dirigir uma oração humilde de pobrezinhos ao manso e compassivo Jesus, senão
erguer um hino de glorificação ao "Agios Ischiros", ao formidável
"Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth".
Os raios do sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho,
aclarando as costas dos tropeiros, esflorando-lhes as cabeças com fulgurações
trêmulas. Parecia o próprio Deus formoso, o Deus forte das tribos e do deserto,
aparecendo num fundo de apoteose e lançando uma mirada, do alto de um pórtico
de ouro, lá muito longe, àqueles que, prostrados em terra, chamavam por Ele.
Os ventos matinais começaram a soprar mais fortemente, remexendo o
arvoredo do capa-o, carregando feixes de folhas que se espalhavam do alto. Uma
ema, abrindo as asas, galopava pelo campo... E os tropeiros, no meio de uma
inundação de luz, entre o canto das aves despertadas e o resfolegar dos animais
soltos que iam fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidão
imensa.
Súbito, Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os
olhos vagos e incendidos de delírio. A mão direita contraiu-se, os dedos
crisparam-se como se apertassem o cabo de uma arma pronta a ser brandida na
luta... e seus lábios murmuraram ainda, em ameaça suprema:
- Eu
mato!... Mato!... Ma...
Fonte:http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/AfonsoArinos/assombramento.htm
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